“A ânsia de ter e o tédio de possuir”
1.
“A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir” é uma frase muito conhecida de Arthur Schopenhauer, filósofo alemão. Depois de escolher como título, devo ter lido umas duzentas vezes no instagram. Entendo pelo menos duas coisas a partir dela: 1) a fome contemporânea de sempre ter mais e sempre ter o do outro (e a grama do vizinho é mais verde); e 2) a suposta falta de controle, de agência diante da possibilidade de ter algo ou chegar a determinado estado.
O desejo por mais foi, um dia, aquela imagem da criança eu-tenho-você-não-tem que nunca teve brinquedos o suficiente. Ou adultos com a compulsão colecionadora: roupas, gadgets, discos, funkos, bebês reborn, não importa. Mas talvez a fome mais aguda seja a de informações que a gente quase tem — e que tentador estar prestes a alcançar, logo ali, há dois cliques de distância.
O método secreto para emitir passagens aéreas baratas. A receita de qualquer sobremesa com pistache (ou alguma oleaginosa que pode se popularizar em seguida; talvez a macadâmia). Um curso de futurologia, que te promete em três encontros online ao vivo te passar gratuitamente os principais tópicos que governam as tendências do mundo. Quase temos. Está ali, de graça, ou quase de graça.
Seis cursos da Escola Virtual do Governo depois, contabilizamos um bloco de informações novas na cabeça, mas também um vazio. Li, assisti, estudei, conheci, viajei, mas qual é o momento em que o sossego chega? Se ainda não vi, li, e talvez seja ali que o maior insight, uma oportunidade grande se estabelece, a vida muda de curso.
E aí entra o 2: possibilidades que viram uma tentação tão grande e irresistível se apresentam de uma forma próxima, fácil — afinal, estão logo ali, na sua tela — e, claro, atacando cada emoção que puderem. A internet dá vazão a cada emoção; te convida a manifestar cada pensamento, insatisfação, ódio, inveja, desejo, de modo a alimentar cada comentário. O hate alimenta o engajamento, monetiza. Já faz tempo que virou um costume se sentir importante o suficiente para falar o que está pensando em qualquer ambiente virtual. Nada novo até aqui.
Ouvindo um episódio do Não te empodero, Ana Sharp coloca esse ponto mais ou menos assim: os mais jovens cresceram com a internet alimentando essa vazão de qualquer impulso; falta um controle inibitório porque o cérebro já foi extremamente dessensibilizado para tal.
Cérebro dessensibilizado envolve, por exemplo, exposição constante à violência na mídia (imagino que para ficção pode acontecer o mesmo, e aumentar a tolerância a imagens de violência); estímulos constantes e rápidos das redes sociais (e se reflete no scroll infinito); consumo de pornografia e uso de drogas recreativas. Perder o critério para avaliar a diferença (e dano) entre um cenário e outro (porque nos acostumamos ao ponto de amortecer as reações emocionais proporcionais) implica, dentre outras coisas, em um bando de pessoas incapazes de lidar com a frustração da diferença. Além de viverem viciadas e entediadas, simultaneamente. Vício, tédio e falta de critérios podem conviver com bom julgamento?
(Duvido médio.)
2.
Apesar de ter sido uma criança/adolescente (muito) melancólica, tive um lado esperançoso que se manifestava escrevendo (blogs, trabalhos). Lembro de ter apresentado um trabalho de inglês cujo título era Living your life to the fullest [viver plenamente ou aproveitar a vida ao máximo]. Era menos sobre YOLO (rip) e mais sobre essas listas “coisas que quero fazer antes de morrer”. Continua sendo meio mórbido, mas era um mórbido bonitinho. Procurava sentido nos sonhos, queria coisas boas para o futuro, sonhava com lugares e línguas e pessoas e uma carreira interessante. Já tem alguns anos que propósito virou uma ideia de pura chacota porque foi abraçado pelo universo start-up-&-coaches. Mas se não dá pra buscar sentido porque é cafona, e propósito é coisa de caloteiro ou riponga, tem como sobrar alguma coisa para esperar da vida além de cinismo? Que perigo. Por isso as igrejas estão enchendo e se chamando de CHURCH. Que falta faz ter ideias um pouco menos contaminadas por tanta lorota.
3.
Gosto de ler e ver coisas sobre sentimentos ruins e qualidades ruins em uma pessoa. Por isso fiquei tão engajada na tetralogia napolitana uns milianos atrás (e, mais recentemente, na série). Na minha cabeça, uma pessoa está mais propensa a admitir um defeito se puder vê-lo num contexto menos demonizado. Invejosa (Netflix) tem um bocado de comentário no filmow dizendo do tanto que a protagonista (a invejosa) é insuportável. Não deixa de ser interessante ver uma história especificamente sobre a chata da história, que provavelmente não vai ser a chata 24/7, e provavelmente vai ser a explicitação daquela vozinha que fala dos seus próprios sentimentos desagradáveis.
4.
Salvo-conduto tem a definição de ser um “documento ou ordem judicial que garante a um indivíduo o direito de livre trânsito, a proteção contra prisão ou detenção arbitrária, ou o ingresso em local restrito, conforme o caso”. Aparentemente, de forma livre ou por escolta policial. Nós, fãs de um papel que nos autoriza a fazer coisas, poderíamos fazer um bom uso de um papel que nos autorize a circular pelo conhecimento. Não um papel que ateste uma formação, mas algo como um psicotécnico que te autorize antes ainda. Pode ir, sem neuras, com escolta.
(Escreveu ela em uma aula de filosofia da linguagem ouvindo alguma coisa sobre constituintes inarticulados.)
Um beijo,