“Ainda que imposta, há que rejeitar-se sempre a normalização do absurdo”
(Desconheço a autoria, mas é uma frase muito boa)
A vida surgiu na água há bilhões de anos, e é o que faz os farejadores de vida extraterrestre se preocuparem tanto com a água na Lua e em Marte, ansiosos por sua forma líquida. Fomos todos peixes; nossos ouvidos estão associados às suas brânquias, o que parece uma loucura. O tempo é uma loucura: estamos habituados a pensar nele como uma dimensão única que aponta para frente. Não ficamos mais jovens, não recuperamos o ontem. No entanto, a física clássica se deparou com a teoria da relatividade, que trata da dilatação do tempo: ele é afetado pela gravidade, pela massa de objetos grandes. Outros físicos mais ousados investem em um tempo com mais de uma dimensão, ou que é uma ilusão da nossa percepção.
De qualquer forma, é nossa capacidade (ou restrição) ver o tempo assim, como uma seta para frente. Nosso organismo pode simplificar essa percepção e, para nós, o que passou, não volta; o que vem, não sabemos. Paramos de produzir colágeno, todos vamos morrer. Faltou contar isso para alguns animais aquáticos, que não são afetados pelo tempo: sofrem de “envelhecimento desprezível”. Hidras renovam os próprios tecidos continuamente; planárias se regeneram; e a medusa turritopsis dohrnii retorna ao seu primeiro estágio de vida a qualquer momento. Um certo molusco ganhou o apelido de Ming por ter nascido em 1499, durante a dinastia Ming (China, 1368-1644). Também temos corais com mais de 4260 anos, e se isso não é absolutamente assustador, não sei mais o que seria.
Absurdo talvez não seria a palavra para definir isso, especificamente. Absurdo seria a busca irrefreável dos humanos para pesquisar esses animais, pelo que eles poderiam nos oferecer. Queremos mais tempo, estender nossa vida até a amortalidade, e aceleramos o tempo e as demandas (sempre inovadoras!) para ganhar mais tempo. Consumir informações mais rapidamente para ter mais tempo de consumir outras informações, ou produtos, ou serviços. De repente, os restaurantes, bistrôs e cafés se tornaram mais caros, seguindo uma outra proposta cooptada pelo capitalismo: o slow down. Desacelere. Faça uma pausa, seu café fica pronto em 40 minutos.
A desaceleração não produz nenhuma cura. Antes, ela é apenas um sintoma. Não se pode curar uma doença com o sintoma.
Hoje, é necessária uma revolução do tempo que gere um outro tempo, um tempo do outro.
Byung-Chul Han
A ciência ganha popularidade na forma de jargões de autoridade ao mesmo tempo em que o campo perde credibilidade. Influencers postam vídeos com o DOI e o print de artigos que usam para supostamente respaldar suas falas. Isso porque na ciência, é de praxe uma discussão do tipo: não fui eu quem disse isso, foi o “Nome de alguém referência na área”. Talvez os artigos sejam reais e embasados, talvez não. Talvez nem sejam lidos mas as pessoas continuam usando como muletas para não engatar em uma discussão.
Em outubro do ano passado, o biólogo Átila Iamarino, que ganhou muita credibilidade ao divulgar informações sobre a vacinação contra a covid, fez uma propaganda para a Shell sendo “pró petróleo”, e parece ter recebido seis milhões de reais para isso. Empresas do porte da Nestlé comumente encomendam pesquisas — obviamente parciais — para respaldá-las quanto a qualidade e eficácia de seus produtos. Laboratórios ou institutos de pesquisa de renome fazem o papel de serem a Autoridade que reles mortais não se atrevem a questionar.
Peirce, inclusive, considera essa uma das formas de estabelecer uma crença: a partir da autoridade. Seja um professor, um padre ou um profissional da área, delegamos a capacidade de questionar a essa outra pessoa e vivemos em paz. Acredito que, quando falamos de médicos, muitas pessoas se deram conta, durante a pandemia, de que eles não são anjos que tudo sabem; fazem muita bobagem e defendem muita lorota também. Mas e o desamparo de quando não podemos tranquilamente delegar essa crítica a outra pessoa e dormir em paz?
Pessoas que não reconhecem que o que chamam de tomada sofisticada é, na verdade, uma mistura simplista de abstração e ortodoxia – a sofisticação, neste caso, é uma exibição de como eles estão satisfeitos com a versão atual da ortodoxia ideológica.
[…]
E assim temos uma geração de jovens nas redes sociais com tanto medo de ter as opiniões erradas que se privaram da oportunidade de pensar, aprender e crescer.
[…]
Falei com jovens que me dizem que têm medo de tweetar qualquer coisa, que leem e releiam seus tweets porque temem ser atacados pelos seus conhecidos. A suposição de boa fé está morta. O que importa não é a bondade, mas a aparência da bondade. Não somos mais seres humanos. Agora somos anjos se acotovelando para serem anjos uns dos outros. Deus nos ajude. É obsceno.
Texto por Chimamanda Ngozi Adichie / Tradução por Aleta Valente
Parece que, mais uma vez, o mais importante é o jaleco bordado do que saber, de fato, do que você está falando. Um cenário assim ou assado, uns milhares (ou milhões) de seguidores no instagram, um “PhD” ou “Dr.” junto do nome, o cursinho de oratória em dia para aprender como falar, onde encaixar ênfases e pausas para ser mais convincente, uma hierarquia.
Alguém pode dizer: eu sei do que estou falando, mas uso todas essas armas porque assim é o jogo, e vou jogar com as mesmas ferramentas. Mas “as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande”. Tem quem desloque a disputa para o lugar do discurso, do “aparentar ser”. Aparentar ser um desafio, uma revolução, mas carregando a mesma estrutura por baixo dos panos. Sabe aquela história dos adversários políticos que se odeiam publicamente, mas jantam juntos no fim do dia?
“A minha verdade” é aquela história que a pessoa conta para apaziguar o estresse, crente que não existe uma verdade, mas várias; tudo é relativo, e “não há fatos, apenas interpretações”. Como se não houvesse uma realidade comum, objetiva, onde todos habitamos.
Tempos malucos são esses, onde a força da linguagem, da imagem, supera as mudanças reais, concretas. Parodiamos a mudança no “campo simbólico” como um prêmio de consolação. Absurdos do dia a dia.
Desintegração geral, dissociando da matéria, do corpo, da comida, do trabalho “com propósito”. Maria Mies menciona, dentre outros argumentos, o ponto de que não é possível negar tecnologias como a engenharia genética e a tecnologia reprodutiva, pois elas já estão dadas e não vão desaparecer. Critica como o argumento mais derrotista e que favorece diretamente as grandes corporações.
Nosso corpo é esquecido enquanto navegamos entre telas, e se tornam apenas um apêndice de uma mente etérea, acostumados a formas sintéticas de intimidade. Os mais jovens já não conseguem conversar cara a cara. A comida é aquela que vem enlatada, e sabe-se lá de onde veio aquele conteúdo. Talvez você já tenha ouvido aquele diálogo onde alguém pergunta a uma criança de onde veio, por exemplo, o ovo que ela come, ao que ela responde: do supermercado! Supermercados desintegram o sujeito da cadeia de produção daquilo que ele consome. O trabalho, no meio de uma linha de produção onde você se dedica a uma pequena etapa, também é alienante, visto que te distancia do resultado, impedindo qualquer tipo de conexão ou afinidade com suas tarefas. O importante é ser suficientemente domesticado, o que me lembra uma boa frase que a Marina Colerato disse em algum podcast: “não importa o tamanho do meu cabelo se minha mente é totalmente submissa”.
No portal da transparência, salários absurdos são ocultados para a segurança do servidor. Enquanto isso, as cidades se desmancham. Ruas perigosas e sujas, espaços públicos para usufruir são quase inexistentes. As coisas são feias, pois não devemos nos preocupar com a beleza, já que a contemplação é “fútil”. Quase tudo o que podemos fazer fora de casa deve ser pago: gastar dinheiro em bares, em cafés slow superfaturados, pagar o cinema dentro do shopping. O shopping, na verdade, é um excelente exemplo: um lugar onde o tempo “não passa” e o clima é artificial. Ar condicionado, sem janelas, apenas vitrines e luz branca. Várias possibilidades de gastar. Templos de consumo.
Observo a vida correndo, conectando esses pontos. A literatura, muitas vezes, “prevê” a realidade, e isso é o assustador das distopias. O conto da Aia, 1984, Black Mirror, Jogos Vorazes, dentre outros exemplos, não parecem exatamente distantes, se for analisar. Utopias já não parecem vingar, mas vejo que muitas mulheres estão criando seus núcleos, resistindo à apatia, à miséria, à normalização daquilo que é nocivo: prostituição, barriga de aluguel, alienação parental, softporn da cultura pop, mesmo que sejam frequentemente ostracizadas por isso. Para mencionar uma história específica da vida real, Daniel Alves mudou a sua versão da história cinco vezes, mas a justiça preferiu descredibilizar sua vítima. É preciso cultivar a raiva.
Acredito que tudo o que mencionei faz parte de um processo de deslocar a régua de tolerância para aceitar coisas mais absurdas, que provêm com a maior comodificação da vida. Por vezes, é difícil falar sobre coisas bonitas, mas diria que é bonito não se entorpecer com os absurdos, como alguém que delega todas as sensações desagradáveis para um remédio resolver, ou faça uma ruptura no cérebro, ou apague informações dele.
Um beijo,