Vou dar um palpite de uma suposta experiência quase universal: qualquer pessoa pode ser afetada pela valorização da tríade dos cursos (logo, das áreas e profissões) medicina, direito e engenharia. E, por afetado, não digo ter o desejo de buscá-los implantado na sua cabeça. Eu não tive na época do ensino médio, sendo vestibulanda. Quando mais nova, nem cogitava chegar perto de qualquer uma dessas áreas. Queria fazer jornalismo, participar do - finado - curso Abril, trabalhar nas redações de grandes revistas da editora. No final, caí no design gráfico, e percebi que tem muito mais profissão rentável (valorizada) do que imaginava. A diferença é que quase ninguém vê esse dinheiro acontecendo, e provavelmente quando você é um (insira uma especialidade médica aleatória), vê com mais frequência.
A coisa do valor ficou imbricada com o dinheiro. Não porque apenas profissões bem remuneradas sejam importantes — aliás, acredito que muitas causem mais dano do que qualquer outra coisa, e uma centena de postos mal pagos são essenciais.as como é custoso demais conseguir um cargo ok com o design (com comunicação, no geral), acabo revisitando constantemente o que uns chamariam de propósito, e eu penso em termos de ser útil. Isso é útil? É útil pra que, pra quem? Desde a graduação, entender o que um designer faz foi uma questão comum entre os estudantes. Entender para si e entender para os outros. Como você explica o que faz? “Naquela época”, escolher design parecia um pouco mais aleatório do que é hoje. É o que, fazer embalagem de cotonete, fachada de salão, capa de álbum, precisa de bacharel pra isso? Tem teoria, dá pra estudar?
Questionar demais fez essa regressão para o: será que vale trocar de área? Uma que, além de me proporcionar uma qualidade de vida melhor, também amenize esses conflitos. Dentista cuida de dente, pronto, útil, valor palpável. Pessoas precisam cuidar de seus dentes.
Fiz um mestrado. Em design. Pensei, a academia pode mudar minha vida, mas não consigo ser ousada o suficiente para fazer um mestrado em outra área. E foi ali que despendi dois anos de esforços para tentar enxergar algum sentido em fazer o que faço. O esforço envolveu misturar design com educação (que já é “minha nova indústria”); um tanto de filosofia aqui, semiótica ali, humanidades, enfim. Comer pelas beiradas de outras áreas colegas.
Dá pra ver dentro desses prédios o esforço de procurar valor. Uns chamam de design de serviço, de design centrado no usuário. Projetar o funcionamento de ONGs e maneiras de arrecadas dinheiro para abrigos de mulheres. É design? Não sei, dizem que design é projeto, então pode ser qualquer coisa. Design de bolos e design de uma nova realidade. Outros, levantam possibilidades para interfaces (sites e aplicativos) serem menos gananciosas e cheias de pegadinha. Tem instagram ativista criando belas imagens para passar mensagens políticas curtas. Tem muita coisa acontecendo por aí que pode ser colocado no lugar de útil para a sociedade. É um “útil” suficiente para acalentar/satisfazer essa questão?
Um psicólogo estadunidense chamado Abraham Maslow criou, ali pela década de 1940, uma hierarquia de necessidades humanas que é bem conhecida: a pirâmide de Maslow. É literalmente isso, uma ordem de prioridades para atender e garantir seu bem estar. A fisiologia está na base, já que uma pessoa sem acesso a comida e água não sobrevive; sono e um teto também são primordiais. E avança para a segurança; para a sociabilidade (o ser humano é um animal de bando, e normalmente se pensa na família como o grupo mais importante); estima; e realizações pessoais no topo, envolvendo hobbies e criatividade. Você sacia uma fatia o suficiente e pode buscar suprir a próxima.
Os direitos humanos tangenciam todas as camadas. Direito à vida, à liberdade de expressão, moradia, saúde, lazer, dignidade, enfim. Mas a pirâmide parece muito certeira ao sinalizar o que é útil ou não para o coletivo; e para nosso entendimento de utilidade. É útil criar outro aplicativo, desenhar, formar outros designers?
Com o tempo, Maslow adicionou duas outras fatias entre “estima” e a “realização pessoal” (esta, impossível de suprir, diga-se de passagem): cognição e estética, totalizando em sete níveis. Grosso modo, as necessidades cognitivas envolvem conhecer e entender o mundo; e estética diz respeito a apreciar; estar em contato com aquilo que é harmônico, belo. E por mais que se questione essa pirâmide ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é interessante ver que, vez ou outra, as pessoas se lembram dessa carência. Então é ali que caio: no desejo por apreciação estética e por conhecer. E conhecimento, inclusive, se relaciona — muito! — a essa apreciação; fruindo, se conhece melhor.
No mestrado, fui pesquisar sobre processos criativos dos projetos de livros científicos. Pronto, tratei de estética, de conhecimento, de estética no conhecimento, do design participando do aprendizado. Passei um tempo considerável tentando provar para mim mesma que fazia sentido ver algo de valor ali. Algo importante, que não ficasse apenas de mãos dadas com a publicidade e o marketing, e que pudesse se preocupar com outras coisas que não lucro e emperiquitar marcas.
Mesmo terminando o mestrado, ainda estou engajada nesse esforço de buscar valor. Não só de um jeito poético e piegas, cheio de palavras rebuscadas e metáforas chochas, que é o que mais vejo por aí, mas de modo prático, objetivo. Esse esforço vai aparecer aqui, possivelmente, no meu instagram, que agora é um caderno aberto, e espero que ressoe em quem convive com esse incômodo. Quem sabe, traz algum conforto para nós todos.
Um beijo,