De alguma maneira o início do Ramadan (esse ano, 12 de abril) me colocou para pensar mais curiosamente sobre como nossa rotina é (inteira) centrada na nossa alimentação. Para cada pessoa/família funciona de uma forma mas, no grosso: acordamos e preparamos o café da manhã, comemos, cuidamos da louça, pensamos o almoço, preparamos o almoço, comemos, cuidamos da louça, pensamos o lanche, preparamos comemos louça pensamos o jantar preparamos comemos louça. E não importa se você lava a louça enquanto cozinha, se lava tudo no final do dia. Tampouco se você compra marmitas, pede delivery ou cozinha tudo o que come. O comer marca seu dia, conta o tempo, anuncia um período diferente. E o que seria a cabeça (e a próprio “espalhar" do tempo pelo dia) se essa lógica fosse minimamente diferente?
Enfim, o Ramadan. Resolvi experimentar um dia de jejum para ter uma diretriz em que me apoiar (ou seja, não ingerir nada da alvorada ao pôr do sol) e colocar em prática também o autocontrole. Não ceder a qualquer pedido do corpo tão instantaneamente. Afinal, estava seguindo uma regra muito bem definida: um dia de Ramadan. E a compulsão é um sintoma muito conhecido da vida (e da Vida Em Pandemia), qualquer alteração de humor ou eminência do tédio (que é diferente de estar desocupada, vale lembrar) pode te levar a comer para descarregar. Reagir tão imediatamente a pequenas mudanças até tira a capacidade de olhar para aquilo e entender se é fome ou se é a necessidade de ocupar um espacinho mental com um preparo, uma escolha relativamente simples e o prazer do sabor. Durante o jejum (foram cerca de 13 horas) o dia passou lentamente e estar sem comer foi mais desorientador do que, arrisco, estar sem um relógio. Não entendia as horas. E não tive fome mas também não consegui preencher esses momentos com mais nada: tomar sol, ler um livro, praticar yoga, reorganizar o armário. Era como se, mesmo sem fome, as únicas coisas aceitáveis a se fazer ao meio dia eram relacionadas ao almoço. Rotina completamente intrincada na cabeça, para dizer de uma forma amena.
Quando o dia terminou, estava me sentindo completamente tranquila. Bebi horrores de água e fiquei quieta. #reflexiva Gosto de me colocar para pensar em tudo aquilo que parece “uma escolha muito natural”. No final das contas, elas acabam não sendo coisas que consideramos mudar ou adaptar para tornar os dias mais toleráveis. Comentei numa outra temporada dessa newsletter sobre como repetir meu almoço quatro da tarde fez sentido, e escutei a Deia Freitas (podcast Não Inviabilize) falar que começa o dia dela almoçando por volta das sete da manhã.
E por que não, né.
Vira e mexe me pego pensando na postura do pombo (pigeon, ou ardha kapotasana). Acho reconfortante como partes do corpo são colocadas em algumas práticas (seja yoga, acupuntura ou o que for) como estritamente conectadas à respostas emocionais e da nossa mente. As emoções obstruídas (negadas, racionalizadas) caem no quadril (“lixeira das emoções”) e segurar posturas que o trabalha intensamente te ajuda a liberá-las, a processar o passado. Sustentar também é uma colocação interessante para perceber o que é desconforto, medo e dor sem ceder ao primeiro impulso em busca pelo confortável, estado “neutro”.
Me parece que somos tão reflexivos (de agir por reflexo, não por reflexionar) que não localizamos tanto o afastamento necessário para diferenciar tantas manifestações que aparentam ser a mesma coisa. Dor, desconforto, medo, ansiedade. Fome, ansiedade, tédio. Raiva, vergonha, culpa, mágoa.
Dentro das (muitas) limitações do meu corpo estou optando há meses pela tentativa de estar fisicamente trabalhando para umas tantas melhoras emocionais. Insisto com gosto, até, talvez por acreditar que em algum momento pode chegar minha hora de chorar segurando uma pose, como se chegasse mais perto de uma cura e, quem sabe, entrar em contato com o tal “momento presente”.
(Nota: engraçado como reflexo -automático, resposta imediata- e reflexão -de refletir, processo delongado- têm a mesma raiz, de se dobrar para um assunto.)
Tenho uma dificuldade de receber elogios. Não apenas no sentido de responder (onde, em geral, tento embarcar na política de apenas agradecer), mas de alimentar uma angústia forte por descrença. Essa pessoa não sabe o que diz e não vai demorar para se dar conta disso. Logo, passaremos pela situação silenciosa mais dolorosa possível: a de perder um elogio. Ter seu elogio retirado só pelo olhar. A expressão facial da pessoa te diz claramente, junto de um tanto de constrangimento: opa, você não era realmente inteligente. Não era realmente talentosa. Não era realmente tranquila, organizada, paciente, eloquente. Foi mal, me enganei.
Pior que não receber elogios é sentir os elogios retirados. Pior do que ter suas falhas escancaradas de cara é ter suas falhas escancaradas por subentendimentos.
E vamos de postura do pombo para soltar essas ansiedades.
Fecho recomendando:
Só consigo praticar yoga com Pri Leite. Qualquer outra professora me deixa aflita. Aproveitando o embalo dos quadris, recomendo essa aula focada na nossa lixeira. hahaha
Martins lançou o clipe de “Me dê” recentemente e essa música é uma delícia.
Indiquei uma música, principalmente, e agora recomendo um clipe, especificamente.
Há um nome para seu mal-estar na pandemia: chama-se 'definhamento', traduzido na Folha. Original em inglês em The New York Times. Para ler em português sem ser assinante da folha, use esse recurso.
Tati Bernardi divagando como num divã com psicanalistas (nesse episódio, Vera Iaconelli) era algo que não sabia que precisava ouvir hoje. Maratonando. hahahaha
Fico por aqui (mas respostas são sempre bem vindas).
Um beijo,