Definições que mais parecem um "blur"
Saindo da academia: desenvolvendo uma ideia nova de "editoria" aqui!
Virada de ano vem junto de um apelo de pensar no que fazer “agora”, o que significa pensar em coisas do tipo: prioridades, referências norteadoras, objetivos. Ficou um pouco difícil cruzar com palavras como “propósito” sem revirar o estômago ou dar vontade de jogar o celular longe. Saturamos algumas palavras, expressões, ficamos tão mais agarrados a esse desgosto (a maneira como esses sentidos foram incorporados e repetidos) que nos esquecemos do uso que esses conceitos têm para nós.
Eu tenho procurado meus propósitos, e preciso fazer uma força imensa para me lembrar que não é nem um propósito que me faça superior a outra pessoa ou que um coach me ofereceu. É simplesmente um motivo que tenho apreço forte. Mas o significado ficou embaçado no meio de tanta emoção.
Essas emoções podem nos afastar de um sentido comum, e o complicado é que precisamos concordar em algumas coisas pra conseguirmos nos comunicar. Precisamos fazer pactos conceituais, de terminologia, de o que a gente quer dizer quando dizemos as coisas. “Falar a mesma língua”. É até fácil perceber quando esses acordos não “selam”. Autossabotagem, fé, tóxico, gênero, positivo, sagrado (e mais tantas palavras viralizadas em bolhas das quais não tenho notícias), todas são palavras investidas de sentidos tão carregados que é comum causarem ou reações de muita aversão ou um apego grande. Um significado tão fechado e pré-fabricado que não se questiona, apenas adere ou repele. Talvez algo como: nesse trigo não há joio, nesse joio não há trigo, simultaneamente.
Estou falando aqui de algumas coisas: sobre esquecermos o significado de uma palavra por focarmos na emoção que ela nos causa; e sobre a dificuldade de definir muitos significados.
Para ser mais amena (e também concreta, aplicando essa perspectiva a alguma coisa “pouco polêmica”), pensei em como esse segundo ponto poderia funcionar com livros — palavrinha que não deve gerar tanta emoção que ofusque o seu significado. Ou seja, se pessoas diferentes conseguem nomear e definir “livro”, e se ainda assim reconhecem como “livros” aqueles objetos que desviarem dessa definição. Pode parecer estúpido à primeira vista, mas pense que o livro não “surgiu” do jeito que é hoje (temos os pergaminhos enrolados e as placas de argila no histórico), e “hoje” ele é um bocado de coisas (depois vá em feiras de livros ou de publicações independentes para espiar as variações).
Livros sem uma palavra, livros feitos para serem destruídos, livros interativos. Livros de doze páginas ou duas mil, livros que cabem na palma da mão ou maiores que uma pessoa. Livros de folhas avulsas, sem cola, grampo ou costura. Livros em envelopes ou de capa dura. O que tornaria todos esses objetos livros, de fato?
É interessante reconhecer a utilidade desses pactos conceituais; essas palavras que generalizam e sintetizam.
Sem conhecer a palavra livro, precisaríamos dizer, por exemplo: “objeto portátil que carrega uma extensão de conteúdo verbal e/ou visual”, tornando a troca mais complexa.
(E talvez nem isso! Porque esse objeto poderia não ser um livro, e sim, um jornal, uma revista etc.)
Nós temos, mentalmente, uma espécie de livro médio: uma imagem geral do que seria um livro. Por aqui, Brasil de 2024, é possível que ele seja algo como: um retângulo que caiba nas mãos composto de uma capa e um volume de várias folhas preenchidas de texto. Mas temos livros que, mesmo fugindo desse livro médio, nós conseguimos classificar, também, como livros. Tamanhos diferentes, materiais diferentes, conteúdos diferentes etc. Imagino que esse conceito (dentre outros) se pareça muito mais com um blur do que um círculo sólido e bem definido. Tem uma “essência” (miolo) mais nítida, mas também partes mais dúbias, moventes, flexíveis (margens borradas).
Mas não dá pra dizer que essa essência é a autonomeação. Um livro é um livro! Ou: um livro é aquilo que seu criador nomeou como um livro. Isso se chama definição circular. Esse é o tipo de coisa que denuncia a insuficiência da língua — e isso não é um problema, apenas uma constatação. Nada vai dar conta de tudo. Até por isso gosto da palavra “tácito”, que significa algo que não se expressa em palavras.
Como designer, organizei essa “essência” do livro assim: “o livro é, em primeiro lugar, um objeto visual; uma extensão de informações que se expressa via certa materialidade. Essa mensagem se materializa em um sistema de escrita, imagem e elementos híbridos”, e por híbridos quero dizer: gráficos, tabelas, enfim, aquilo que chuta para os dois lados. Tem livro só de texto, livro só de imagens (como livros cujo objetivo é apresentar fotografias) e livros que transitam no meio desses extremos. O livro ser visual acaba criando a necessidade de identificar isso na palavra (ou “significante”): audiolivro, um livro em áudio, “não tradicional”. E-book, “electronic book”, livro digital, não tem exatamente uma materialidade.
Além disso, nesse livro “convencional”, ou seja, material, existe um projeto gráfico (fontes, cores, proporções e uns vários elementos) e uma produção gráfica (formato, papel, acabamentos etc) que geram sensações no leitor e não são aleatórios: decidimos e criamos pensando no significados que cada escolha pode ter. Cada contexto (histórico, social, cultural) vai ter um livro mais característico, convencional, como tem uma arquitetura ou vestimenta mais convencional, e criar algo diferente disso vai trazer sentidos diferentes (que interessante é ler Queria Ter Ficado Mais, livro em cartas da imagem ali em cima!). Ou seja, mesmo esse “livro médio” vai mudando ao longo do tempo (e em povos diferentes).
Tem um paradoxo bem conhecido na filosofia, O navio de Teseu, que parece uma maluquice, mas ajuda a pensar sobre como uma coisa muda ao longo do tempo. A história é, basicamente: Teseu, o fundador de Atenas, em uma viagem de navio, precisou trocar, aos poucos, todas as suas peças por novas; foram atualizadas. Fica a pergunta: o navio do início da viagem era o mesmo do que a completou? E se fosse montado um outro navio com as partes estragadas e descartadas, terminaríamos com dois navios: qual deles é o navio de Teseu? E mais um bocado de questões que podem ser levantadas.
Essa vai ser nossa metáfora, então vamos pensar que a associação é a seguinte: o navio é nosso termo/conceito (para esse exemplo, é o livro) e a viagem é a passagem do tempo. Ou seja, “peças” desse “conceito” foram atualizadas, e o livro de 2000 a.C., de 1455 e de livro de 2015 parecem não compartilhar muito entre si. Todos os “elementos” que o constituem parecem ter sofrido alterações. Então estamos falando realmente da mesma categoria “livro”?
No geral, diria que sim. Aqui, estamos falando de palavras (navio, livro) que dão nome a objetos que o ser humano criou para servir a algo (artefatos). Penso no processo eterno que esse livro se submete como se fossem as atualizações dos programas e sites que acessamos. Eles precisaram mudar porque todo o contexto mudou e pediu isso. Mas a nossa interação e intenção (ao navegar naquele navio, ao ler aquele livro, ao navegar naquele site!) continua acontecendo com aquele intermediador/artefato/objeto. A mudança é gradual, “natural”, uma adaptação para ter condições de seguir servindo àquele propósito. Então é como se fosse uma mudança esperada para dar conta de acompanhar todas as mudanças ao redor. Então a gente reconhece o que é agora, mas também reconhece como aquele objeto pôde (teve condições) de cumprir determinado papel em outros tempos e lugares, com os materiais e tecnologias disponíveis.
Costumamos dizer: a língua é viva, pode abraçar variações. Mas quando mais variações um conceito (ou palavra, ou significante) abraça, mais vago e impreciso ele é — a linguagem também é algo criado pelo ser humano para servir a algo. E começa a “servir menos” ao seu propósito, que é conseguir ser compartilhado entre pessoas para se comunicarem. Definir é delimitar, mas o ser humano parece ter criado uma certa antipatia com delimitações, o que acaba sendo também uma antipatia com compartilhar signos para se comunicar. Como se, dentro de uma mesma língua, passassem a falar dialetos completamente diferentes, e viver em desacordo. Um “biscoito ou bolacha” mais extremo.
Então fica um convite para se pensar qual é o “miolo” dos termos, e como podemos lidar com esses contornos para que não sufoquem o significado, mas também o tornem difuso demais que desapareça. As mudanças dos termos e sentidos acompanham — e não atropelam — as mudanças do tempo, contexto, povo, mundo. Aquilo que significa qualquer coisa, no final, não quer dizer nada.
Esse texto foi, na verdade, uma proposta de trazer minha produção acadêmica para cá, newsletter que não é nem acadêmica e nem nichada (minha formação é em design, esse mini público não é de acadêmicos ou designers). Já me sinto órfã desse mundo da pesquisa pós mestrado, então aproveito a deixa para fazer esse teste de “traduzir” meus artigos. Mas acho uma ideia válida de exercício, de recontextualizar. Vai que alguém é fisgado.
(Se tiver algum curioso e quiser acompanhar o raciocínio completo, o artigo está disponível aqui.)
Um beijo,