Não tinha percebido que fazia tanto tempo que não escrevia. E que bagunça teceu esses meses! Tenho a mania de questionar tudo e qualquer coisa, então estava muito consciente de que é muito difícil para mim viver sem ter ao menos uma caderneta mental tentando processar tudo o que vejo em uma narrativa de letrinhas. A vontade de contar história de tudo não se mede e, muitas vezes, sinto que ela interfere na minha capacidade de existir nas histórias de forma… viva. Sem precisar me esquivar do caos para me recolher num cantinho, botando ordem nas palavras. Então o esforço de não escrever foi consciente, pra que o impulso de registrar e organizar não me arrancasse da experiência de atravessar todo esse tumulto.
O ano já vai acabar, minha rotina tão ilhada num apartamento pequeno convivendo apenas com um gato foi substituída por uma bateria de gente que me fez chegar semanalmente na acupuntura dizendo: estou em excesso. Tem muita gente, muita coisa, muito estímulo me circulando, e não consigo dizer nem que isso é uma queixa. Não digo como se fosse algo para “corrigir”, até porque cada vez percebo menos questões como passíveis de correção. Então deixo bater, toda essa vontade de gritar, correr, chorar, fica aí, sendo, enquanto os dias viram e me lembro que eventualmente vou morrer. Que eventualmente o excesso só deixa de ser.
Eu não quero sentir a necessidade de variar meu repertório só para dar a entender que acompanho coisas muito diferentes. Ouço os mesmos podcasts, sigo poucas pessoas, leio poucas autoras, deixo meu mundinho tão restrito quanto for interessante. Um outro tipo de armário cápsula. E digo isso porque, assim como na análise, minhas questões e referências são praticamente sempre as mesmas. Quero dizer que hoje fui encerrar uma série de 12 aulas de yoga da Pri Leite (único canal de yoga que acompanho) e o tema dessa aula final era “recomeço”. Fechava ali na savasana, e foi a primeira vez que ouvir Pri dizer que essa postura, deitada, em relaxamento, significa “postura do morto”. E fiquei ali, meio sem relaxar, pensando. Imagina quando for para ser.
Foi curioso perceber que ela sempre dizia os nomes das posturas em sânscrito e português, mas essa, não. Foi uma quebra que notei e reverberou em uma angústia que provavelmente vai me acompanhar pra sempre (e me lembro de viver de mãos dadas com ela desde criancinha).
Voltei a estudar desde a última vez que escrevi por aqui. Comecei um mestrado que questiono quase todos os dias, e já comecei a conversar com meu orientador dizendo: eu sou a pessoa que chora e se desespera o tempo inteiro, então não se assuste, só preciso de ajuda pra ver valor nas coisas. Me irrito quando escrevo em primeira pessoa, afinal, o que interessa, quem se importa, quem sou eu para. E aonde quero chegar com esse jorro de tagarelice. Não sei, não sei de que vale, não sei o que esperar, tanto faz o que esperar. Agora digo “tanto faz” sempre que possível, sempre que honesto. Não quer me responder? Tanto faz. Me achou prepotente? Tanto faz. Prefere suco de maçã ou laranja? Tanto faz. Gosto de não precisar opinar, ou de precisar sofrer. E de me envolver menos com a fala do outro, aquela fala de alerta, que me aponta o dedo como quem diz “cuidado, o que você diz vai te tirar do Grupo das Pessoas Boas”. Tanto faz as pessoas boas, as boas e ruins atitudes, os detentores da ética. Tanto faz os que se atribuem tanta importância assim. De vez em quando é possível selecionar os tormentos, entender o que é uma nota de corte, do que dá para abstrair. Estava hoje mesmo rindo um pouco, com uma professora de história, do absurdo que é ser milionário, do que tem valor para essas pessoas, do que não faz cócegas, do tanto que devem se esquivar das ruas, carros, normalidades. Gosto demais dessa palavra, “absurdo”. Como disse, sou monotemática. Sigo aqui pensando em excessos, com minhas estratégias de sobreviver que vão da ingenuidade ao deboche, do tanto-fazer ao muito-a-dizer.
E digo também, pra que a pressa? “Segura essa menina, isso que tem cara de inovador, vai que ela consegue o título de doutorado em dois anos e meio?”. Pirou, pra que essa correria, deixa desenrolar no tempo que for. No caso, sou afobadíssima, mas agora sou uma afobada mais controlada. Acho graça lembrar de uma análise (psicanálise) em que ouvi que havia começado a perceber que não precisava mais correr. Poderia caminhar. Fiquei mexida, pensava em mim sempre como a pessoa das pernas longas e passo rápido. Quem me via pela rua precisava dizer que me viu correndo. Gosto de revisitar essas memórias completamente nubladas. Não sei mais quem era essa pessoa, mas sei que ela se sentia outra coisa. Só de saber que era outra coisa me considero mais feliz.
Eu gosto de ser a pessoa que pensa demais. Gosto de jorrar um discurso e ver em que ondas ele volta. Isso é a análise, e a terapia de muitos. Falar, ter um ouvido atento que te diga o que talvez você tentou elaborar. E aí jogar outra coisa por cima disso. Tento aplicar também no mestrado, falando uma porção de coisas e esperando que os verdadeiros pesquisadores entendam e me contem do que estou falando. Gosto de ver que fujo tanto através da graça (é melhor que um bocado de outras fugas). Gosto de me dar conta de uma coisa óbvia (uma coisa que muitos nomeiam como o saber molecular, quando você percebe e entende de fato), mas acho que isso rende uma outra divagação. Gosto de me pegar me justificando e saber o motivo, e que é um motivo tão meu que (a minha suposição sobre) a suposição do outro se torna boba. Gosto de perceber o que é o sofrimento, o absurdo que é ser humano, que é querer sofrer, que é gozar do sofrimento, e negar com todas as suas forças, negam porque parece ridículo usufruir da dor. Mas, ah, usufruem.
Uma vez assisti uma palestra em que uma mulher, talvez dona de uma pequena editora, já me esqueci, perguntou: se você fosse criar uma editora, publicaria o quê? Eu disse, livros que incomodam. Adoro livros que incomodam. Claro que me divirto com uma ou outra bobagem, seja ali Jane the Virgin, Modern Family, tantas séries cuja intenção é ser um refresco descomplicado. Porém sinto o movimento do incômodo agitando o corpo, e me colocando nessa posição do excesso. É difícil demais abrir mão dessa delícia esquisita, amorfa, extrapoladora, sensação que diz algo como “tem alguma coisa aí”. Ouso dizer que guia minha vida, o tal do incômodo. É o maior catalisador dos fazeres. O incômodo te tira de um trabalho chato, da cama, de um relacionamento irritante, te faz parar na rua pra ver se entrou uma pedra no sapato, te bota pra pensar, e quer coisa mais humana e viva do que pensar, reagir?
Quem não o faz, não liga, quem não cria expectativas, não se emociona, só chegou na própria savasana mesmo, enquanto o corpo roda suas engrenagens.
(Como é estranho perceber que o momento em que mais me sinto viva é aquele em que me lembro que poderia estar morta.)
Para não ser diferente, vou recomendar o que já tenho na rede. A LP lançou seu álbum Churches e ele é uma obra redondinha. Destaco: everybody’s falling in love, my body, angels, yes, can’t let you leave.
Gosto de podcasts que tratam de psicanálise. Vibes em análise, sobre o feminino, a loucura nossa de cada dia, meu inconsciente coletivo.
E terminei Frantumaglia, da Elena Ferrante. Como é bom “entender” um tiquinho de como funciona essa cabeça fantástica. Inclusive, ela dizer que é uma leitora que esquece fácil o que lê foi a autorização que eu precisava para desbloquear esse incômodo comigo mesma (e uns outros).
Por enquanto é isso Nos vemos, nos lemos, nos falamos (se quiser).
Um beijo,