Nas minhas mudanças de casa, deixei o lugar melhor do que recebi. Um encanamento consertado, piso reformado, chuveiro instalado, infestação de pulgas eliminada, portas e janelas nos trinques. Sair me deixa mentalmente arrepiada — meu corpo mesmo não tem tanto essa reação, infelizmente, como têm as pessoas que arrepiam só de escutar uma música.
Dói, doeu todas as vezes, mas doeu de urgência: preciso abandonar esse lugar, dar as costas, começar de novo. Parece que mudar de casa se tornou a versão jovem-adulta do antigo “cortar o cabelo” que me servia para demarcar bem as fases. Agora queria mesmo um corte de cabelo para a vida (ou, pelo menos, para os próximos dez anos).
Moro num apartamento bem miúdo e, assim, sinto a necessidade de demarcar os microespaços. O canto-sala-de-jantar seria de uma cor diferente do canto-escritório, tento burlar a proximidade de centímetros com uma outra lógica. Considero ser um lugar aconchegante pela facilidade que teria de deixá-lo, pensando que, de tão pequeno, uma mudança não me tomaria tanto tempo e esforço e dinheiro. Quando preciso enfrentar minha bagagem, sempre sinto que preciso largar um pouco daquilo tudo para trás. Respiro tranquila quando vendo, doo, me desfaço de coisas.
Nunca é o suficiente, coisas sempre parecem um excesso, mas talvez aceitar essas sobras por perto faça parte de algum processo que espero nomear um dia.
Contrastes dominam qualquer sombra que caia no meu território. O desconfortável se torna insuportável em um pulo, o desprezo vem depois do incômodo que uma pessoa me transmite, logo não posso mais dividir o ambiente com aquilo. Aquele corpo, aquele teto. Passar em ruas onde já morei corta minha respiração e acelera meus batimentos: aquelas memórias boas dali já foram corrompidas.
Uma pena, testemunhar a mente ser colonizada assim, sem ter o que fazer para evitar. Tudo aquilo que se foi é enterrado no fundo da mente na esperança de virar janta das traças psíquicas, que costumam corroer um tanto dos sentidos e deixar uma memória só existir em sua parcialidade (se lembrar do som, da dor, do cheiro ou da cara; mas não de tudo de uma vez). Uma pena, tantos os traços que moram em nós e que precisamos aprender a conviver já que a ação de despejo só vale para locatários de casas, não para intrusos da psique.
Dá para tentar, de qualquer forma, preparar a casa para deixá-la. Quando varri a última moradia, senti que esvaziei um pouco essa cabeça agitada que carrego por aí, limpando-a um pouco da angústia das inconclusões e estranhezas que todo teto invariavelmente tem. Fiz e vou continuar fazendo isso na esperança de que um dia todo esse tumulto seja perdoado e faça parte da convivência. Esquisita, mas menos desesperadora.
O clube dos 27. A maldição de Tutancâmon. As pragas do Egito. Cemitérios. Roupa de brechó. Sexta-feira treze. Prédios (muito) antigos. Espelho quebrado. Bonecas de porcelana. Voodoo de filme. Brasil pós 2016. E outras tantas histórias, objetos, situações, casualidades ou o nome que queira dar para identificar uma carga negativa entranhada naquele sujeito. Poderia chamar de azar, mas a ideia de estar (ou ser) amaldiçoado envolve o azar contínuo, sem respiro, numa sequência de desastres.
Praga.
Talvez você já tenha feito alguma coisa para quebrar um azar insistente. Banhos de ervas, sal grosso nas portas, chás, tirou cartas, dormiu com colar de olho grego, queimou um papel em uma vela com inscrições, defumou a casa, comprou arruda, foi benzida, plantou pimenta, colocou espada-de-são-jorge na sua porta, fez uma oração, parou de contar sobre sua vida porque só assim para se proteger do olho gordo. Por causa de um pressentimento, por estranhar a própria vida. Por ouvir demais.
Despejando palavras sem contexto até parece muito tranquilo se preservar, estar atenta. Mas qual é o momento em que deixamos de apenas nos proteger para engrossar os muros da nossa ilha?
A proteção vem em forma do riso.
De contar uma história incômoda com um sorriso de quem leva todo aquele fardo com graça e um tiquinho de desdém, que não se abala. E receber, dia depois de dia, o veredito: você é azarada demais, procura um centro espírita, vai tomar um passe, tenta jogar algumas coisas fora, nunca vi outra pessoa passar pelos problemas que você arruma. Falam, várias bocas com a mesma graça (e um tantinho de incredulidade). Acredito que se você está vivo, falas vão atravessar seu corpo, e parece que isso nunca vai deixar de me surpreender.
Como fazer um detox (essa palavra já ficou ultrapassada?) das interferências das pessoas sem se colocar num exílio por tempo indeterminado?
No verso da folha, a sensação de acontecer a coisa certa no momento certo é ainda melhor quando se arrasta por um tempo. Sincronicidade costuma ser a palavra usada, um conceito de Jung que foi capturado por coaches, então me sinto mais à vontade ao falar apenas de sincronia, ou estar em sintonia com a própria vida de alguma forma.
Por vezes parece questão de perceber as coisas acontecendo, e tirei muita satisfação disso nas últimas semanas. Ver pessoas generosas e aceitá-las generosas comigo fez parte, assim como fez parte engolir um tanto da culpa de ser eu em contraste com a bondade que não sei bem se mereço, mas sei que quero me ver com essa dignidade.

Essa news, diferente das outras, escrevi numa tacada ouvindo essa playlist. Estou fazendo o teste de liberar todo esse texto sem sofrer tanto com as revisitações. Me sinto muito tranquila investigando relações entre casas, assim como me dá prazer me reconhecer no desconforto de palavras que não escrevi ou sentir a dor de ter o pescoço tenso ser manipulado por alguém que sabe o que está fazendo. Parece o tipo de insistência que faz dar certo, entre tentativas e respiros — um outro assunto delicioso para escrever.
Obrigada pela companhia :)
Um beijo,