O carnaval passou, fevereiro evapora a cada segundo como se durasse uma quinzena. E que bom!, a festa, os desfiles, o samba mal sambado de quem só saiu de casa pra ver um pouco de gente e música. Consegui ser a foliona que nunca fui, passando por três fantasias, e ainda saindo em um “pré carnaval” (pré sendo apenas uma referência para o momento oficial, daqueles quatro dias), e foi, praticamente na mesma proporção, euforia e desconforto, diversão e mal estar.
Gosto um tanto desses acidentes, de esbarrar com um bando de pessoas que não via há tempos, em um contexto tão particular que te permite igualmente passar batido ou passar abraçando. A soltice do carnaval te autoriza a reagir ao outro com outro manejo, talvez mais divertido, e isso vai te oferecendo de bandeja umas informações sobre você, sobre suas relações. Por aqui, encontros com surpresa-positiva, com surpresa-desconfortável, com olhar-e-desviar, com todos os encontros, tão encavalados uns nos outros, são um respiro e um balde de água fria. No meio do carinho, da educação forçada, do desprezo, olhar para as pessoas e para a maneira como se colocam é um belo de um alarme para te despertar para o momento em que você está na sua vida. Porque tudo vai mudando tanto, e todos vão desaparecendo, e às vezes (nem sempre, mas às vezes), precisamos atualizar as memórias que temos de uns alguéns para conseguir relaxar.
Eu não sei como interações tão rápidas viram memórias tão extensas. Consigo tirar sons do ambiente, intensificar palavras e desacelerar os momentos, automaticamente. O tempo dobra, feito uma folha em encadernação, onde a imposição de páginas consegue juntas duas consecutivas, mesmo depois de espaçá-las nas lâminas de impressão. Então vejo os rostos assim, últimas lembranças, agora, antes-agora, antes agora, antes agora, antes agora. Recalculo rota, para concluir: por aqui, está tudo bem, ou está meio merda, ou não dá pra saber. Tem a ver com um jogo de confiança que, para mim, é um mistério absurdo, mas que me contento em dizer que mora nas entrelinhas; na dinâmica muda entre as pessoas.
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A literatura de ficção se tornou um lugar muito difícil para mim nos últimos anos. Me dei conta de que não fluo nas leituras, às vezes por problemas na forma (o livro, o projeto), mas normalmente porque o autor não me passa nenhuma credibilidade. Pego histórias que têm uma ideia forte, e ainda assim não consigo atravessar uma linha sem uma rabugice imensa.
Li nesse final de semana o As margens e o ditado de Elena Ferrante, que foi lançado esse ano pela intrínseca. Nele, quatro ensaios sobre escrita e as leituras que marcaram Ferrante, autora que eu confio sem piscar e posso imergir no texto em paz. Sua obsessão com o realismo e detalhes sobre como vai descrever a cor da pedra que sua mãe usava no dedo sem ser gótica, sem atritar com a vida que estava reconstruindo no texto; ou, melhor, quando via a necessidade de usar o dialeto, mas não redigir a oralidade, e precisava de outros truques, me foram prova o suficiente de que o cuidado nervoso com as palavras não poderiam não gerar um flow. A transcrição “parece uma traição” que esteriliza o dialeto, disse, e ele vira uma cadência (p. 91).
A simpatia também faz tudo ser mais crível, pensando nas personagens
imaginadas como mulheres que, devido às vicissitudes da respectivas vidas, tornam-se corpos rigorosamente lacrados. No passado, lançaram pontes na direção do outro, mas não tiveram sucesso e ficaram sozinhas. Não têm relações com parentes, não têm amigas, não confiam e não se entregam. (p. 58)
Histórias cheias de desconfiança, de contradições, onde o tom está ali, nas entrelinhas, onde o desconforto esclarece e acolhe, e pode ser, assim, prazeroso.
Em honra à repetição, reli pela milésima vez esse trecho do discurso de Michaela Coel ao receber um Emmy por I may destroy you, uma das minhas séries favoritas (obviamente não pela sua leveza).
Escreva a história que te dá medo, que te dá incertezas, que não é confortável. Eu te desafio. Em um mundo que nos seduz a navegar pela vida de outras pessoas para que possamos determinar melhor como nos sentimos sobre nós mesmos, e a sentir a necessidade de estarmos constantemente visíveis, pois hoje em dia visibilidade parece ser sinônimo de sucesso, não tenha medo de desaparecer – do mundo e de nós, por um tempo, e ver o que vem até você no silêncio. (Michaela Coel, ver aqui)
Desaparecer, enquanto uma pessoa arisca, é um grande sonho/delírio recorrente. E é um lugar possível se construído em textos e interações onde o que está mais presente é aquilo que não foi entregue, diretamente. Pelo menos, é o que percebo.
Um beijo,