O homem da corrente prateada entrou no espaço comum do prédio. O percebi de soslaio, como uma perturbação no oceano do piso onde estava estendida, tomando sol em minha canga. Ali, entre os vizinhos, com Fletwood Mac nos fones de ouvido, pensava em como gostaria de inventar umas dezoito vidas alternativas para narrar a eles, variando de acordo com a conveniência, com a reação que buscaria. Eles, que enchiam a boca para falar dos jovens, pareciam falar de uma mesma massa de humanos entre os doze e os vinte e oito anos. Eles, os jovens, não sabem conversar, render assunto, economia, conhecimentos gerais, o kit básico. Não conhecem dor, não conhecem empatia. Escutava, o volume da música não estava alto, e busquei alguma identificação de algum grupo ou sujeito. Não encontrei, ela apenas um desabafo coletivo sobre qualquer coisa que incomodava nas lembranças frescas.
Em algum momento, sem os fones, estive incluída num assunto. Uma mulher soltava conselhos a outra, da mesma faixa etária, porém mais magra, o que foi reforçado pelo menos seis vezes, o seu corpo. E dizia: homem pra quê, com 800 reais você consegue um bom vibrador, se satisfaz sozinha e pronto. Eu disse, sem grandes pretensões de falar muito, nem precisa de tanto, com cinquenta você se diverte, e 300 já consegue umas coisas bem mirabolantes. Ela, eufórica pelo assunto, já irritada com o tema “relacionamentos”, disse que não, porque com oitocentos reais, o vibrador era mais liso, e tinha múltiplos pontos de estímulo, mas estranho, não precisa de tanto, repito, pensando em que raio de marca de luxo ela estava apostando, pra um primeiro investimento, coisa de primeira viagem, será que faria sentido gastar tanto? E ela encerrou com: tenho quarenta anos, você, vinte, tudo o que eu vivi a mais, você nem imagina. Ergui as sobrancelhas, realmente, ela tem quarenta, eu, vinte e cinco, são uns bons anos que não teria como conhecer nem se quisesse, essa vida dela. E o que poderia acrescentar a esse corte, afinal, é inegável, ter vinte e cinco, ter quarenta. Ouvi seu discurso e deixei ele esfriar ali, fechei os olhos para o sol.
E o homem da corrente, não o vi bem. Não quis olhá-lo, virar o rosto pra entender o semblante, mas vi os vincos na pele branca-rosa, o relevo da idade, e um borrão de roupas esportivas em preto e azul marinho. Ouvia o desprezo, direto e geral, para aqueles que não sustentavam os Assuntos Nobres, as Atualidades Convenientes (no final, são tantas), e me perguntei o que tanto havia para se dizer sobre o Ibovespa ou o preço da gasolina, ou seja lá o que esses homens da voz rouca de tanto fumar têm a dizer.
Me lembro de um motorista do Uber que redigiu imensos elogios a uma amiga por saber do técnico de um time x, e acompanhar jogos sabendo das regras do jogo, dizendo, olha só, uma mulher sabendo de futebol, que coisa incrível conseguir sustentar esse assunto, muito interessante, como quem diz a uma criança: que bacana, memorizou a tabuada do seis, muito esperta, validada está.
As mulheres e a liberdade sexual, empoderamento financeiro, os homens e o domínio dos índices que regulam o mercado, fascinados pelo touro dourado que durou quase nada em São Paulo, transtornados pelas controvérsias ligadas a ele. Todos esses papos, assuntos fervorosos, todos os incômodos que desencadeiam cortes secos, a idade, o sexo, do que é que você sabe, e viram o rosto, desprezando outras perturbações desses insetos que são as pessoas menos dignas de atenção. Evocou um pouco da autoridade materna, ou a carteirada da colega que, imagina me questionar, sou estudada, já publiquei sobre esse assunto, não me disponho a discutir.
Atualmente, não sei como funciona, mas já ouvi muito dizerem que “sou responsável pelo que digo, e não pelo que entendem”. Também conhecido como se tirar da reta. Tirar o seu da reta ou algo semelhante. Mas fico me perguntando para quem essas pessoas conseguem dizer isso e (supostamente) se eximir de responsabilidades, e quais responsabilidades são essas que estão assumindo. Realmente, Lacan, a essência da comunicação é o mal-entendido, e haja fôlego para sustentar a vida assim.
(Como se houvesse alguma alternativa.)
((Se houver, me conta?))
Um beijo,