Queria deixar meus dois comentários sobre coisas (no geral) que aceitamos porque parecem ser bem razoáveis. Ideias aceitáveis e — aparentemente —inofensivas, que podem até ser, grosso modo, boas, interessantes, mas quando a esmola é muita, o santo desconfia. Até porque é estranho ver algo benéfico para as massas tomar proporções gigantescas nesse mundinho onde meia dúzia de malucos controla a mídia brasileira. Daí ideias acabam se resumindo a isso: ideias, coisas que irão te dar virtudes heroicas e encher tua bola — ou, em bom português, elevar seu capital simbólico.
Pensei nisso quando comecei a assistir Ruptura (Severance): sobre como estourou o movimento VAT — vida além do trabalho, iniciativa de um cara que, logo em seguida, engatou uma carreira política, sendo eleito vereador com um número estrondoso de votos.
Mas voltando a Ruptura, série da Apple TV+ que foi lançada em 2022 (eu comecei a assistir no final do ano passado) e tem umas duzentas boas sacadas por segundo. Resumindo a trama: no universo da série, uma empresa (Lumon) de neurotecnologia (ou algo do tipo) fez do processo de ruptura (divisão da consciência) de muitos de seus funcionários — a ralé, no caso — um mote fundamental para seu funcionamento, e leva um bordão muito jeitinho VAT de ser: pelo life-work balance. Equilíbrio entre a vida e o trabalho. Separe sua consciência entre a pessoa-do-trabalho e a pessoa-da-vida-pessoal, não tem como dar errado.
(Onde a frase de efeito é forte, o santo desconfia.)
Um spoiler, que não deve ser tão spoiler assim, é que a principal teoria sobre o que a Lumon tenta fazer é correr atrás do objetivo bem nobre de acabar com o sofrimento humano.
Voltando ao VAT como um exemplo conveniente. A campanha viral foi encabeçada por políticos carismáticos que devem ter visto uma boa vantagem ao surfar nesse fervor do tiktok. Não tenho nada a dizer sobre Fulano e Cicrano envolvidos nela, mas sim, sobre o movimento em que certas coisas bombam, e por isso, são válidas, fáceis de abraçar ou de criticar muito rapidamente. Muito rapidamente. Por que agora, e não com a PEC 221/2019, anos antes? A resistência política acabou ou se transformou em estratégia, onde só fingimos que damos o que o outro exige, porque fingir é o suficiente? Sustentamos as ideias pelo que aparentam até as próximas eleições ou alguma coisa realmente acontece?
Ser desconfiada de que esse exemplo (ou outros, que seja) é pura retórica não costuma ser bem visto nas redes sociais, onde questionamentos costumam ser tomados como coisa de inimigo infiltrado, e a velocidade de todo esse movimento chama a atenção. De repente, corremos e acionamos o Chat GPT, um conhecido ou o influenciador mais próximo para cobrar uma posição e a tradução dos textos jurídicos da PEC. Vi gente furiosa falando que foi mal escrita, que tem conta mal feita, e depois gente explicando que não é assim que se faz conta nesse caso, e que o texto estava nos conformes. Eu já sustento que o jurisdiquês existe pra política sair da alçada do povo, que não consegue decifrar esses códigos internos contraintuitivos para qualquer um que não faz parte daquele mundo.
(Aliás, na minha cabeça funciona um MEC alternativo com uma modalidade de ensino “intermédio” entre a educação básica e a superior. Envolveria noções de direito e lógica para que as pessoas conheçam os seus direitos, por exemplo, mas quero divagar sobre essa microutopia depois.)
Acho Ruptura uma obra prima ilustração muito boa do que é esconder uma crueldade cínica e super bem orquestrada com uma roupa alinhada, palavras bonitas, hipotética boa intenção. Na pressa (de novo, é sobre a velocidade incompatível com a vida) de estar a par da última febre, independente da sua real compreensão daquele tema, delegamos. Tomo para mim a opinião que um Beltrano disse, e acho confiável o suficiente para abraçar e defender com todas as forças (fixação da crença por autoridade e aprioristicamente). Delego para uma agência de checagem de fatos, obviamente neutra e dona da verdade (ironia). Para jornalistas bem pagos e que não estão sendo pressionados a cumprir a cota da ideologia que o dono do portal defende (ironia de novo).
Ideias têm consequências é uma frase muito comum. Já li por aí com o complemento: não precisamos chegar no nazismo para atestar isso. Esse também é o nome de um livro de 1948 um cara chamado Richard Weaver, e só pelo sujeito, capaz de boa parte já torcer o nariz para a frase, já que esse historiador estadunidense estava associado ao conservadorismo de sua época. Mas sou a favor do provérbio até um relógio quebrado acerta duas vezes ao dia, e é bom cuidar para não jogar o bebê fora com a água do banho. Tipo o hipotético vegetarianismo do Hitler (sou vegana), pra dar um exemplo. Se resolvem reconstruir o genoma de Hitler e ele vira para mim e diz: o céu é azul!, longe de mim discordar só por temer cair numa manchete “Amanda concorda com Hitler”.
Não sei se passo essa impressão aqui, mas sou muito insistente nesse ponto de que o desgosto por uma figura não deveria refletir no desgosto a qualquer coisa que a pessoa faça, fale ou defenda de alguma forma. Na lógica, imagino que isso seria algo como um ad hominem — uma falácia que refuta algo atacando quem fala, e não destrinchando o argumento. É mais fácil desqualificar a pessoa.
Enfim. Não é o foco do texto, mas uma das críticas de Weaver é em cima da rejeição do realismo metafísico — basicamente, afirmar que existem realidades/verdades objetivas que independem de nós —, que afirma que muita desgraça vem acontecendo a partir disso. Também tinha algumas coisas a dizer sobre a retórica, a “arte de bem falar”, lamentando a sua distorção. É saudoso da retórica clássica, que se apoia em três pontos: ethos (credibilidade), pathos (“paixão”, emoção) e logos (lógica). Vou arriscar um exercício de diferenciação aqui, entre uma retórica mais emocional e apelativa (1) e uma mais equilibrada e lógica (2):
Se você se importa com o trabalhador de verdade, vai assinar essa petição. VAT ou barbárie! Quem não assina, deixa seus direitos na mão dos outros.
Ethos: só quem assina está “do lado certo”.
Pathos: apelo à empatia e virtudes como a justiça, com sentimento de urgência.
Logos: escassa.
Valorizar a vida do trabalhador exige ações concretas. A partir dessa petição pela VAT, demonstramos nossa luta pela defesa dos nossos direitos, nos colocando um passo mais próximo de nossa próxima conquista.
Ethos: voz da coletividade, atribui valor ao trabalhador.
Pathos: senso de pertencimento.
Logos: progressão em causa/consequência: a petição é uma ação concreta em direção à uma nova conquista.
(Considere que o orador 1 grita, coloca bastante ênfase em palavras específicas e faz pausas prolongadas. Fica mais divertido de imaginar.)
É quase uma heresia viver no mesmo mundo em que a China implementa a internet 10G — tipo 50 vezes mais rápida que a internet no Brasil —, imaginando quais efeitos essa insanidade teria no comportamento, no consumo, na pressa de consumir mais informações e acatar ideias inofensivas, mas agradáveis. Gostáveis o suficiente para um X influencer ou político ou os dois adotar, ninar e celebrar, e para um internauta repostar o conteúdo em seus perfis de redes sociais low profile. Nem Orkut salva.
Um beijo,