Tenho pensado sobre utopias. Distopias ganharam muita força: Handmaid's Tale, Black Mirror, Ruptura, 1984, Admirável Mundo Novo, e assim por diante. Elas parecem dizer muito sobre como vivemos, sendo, talvez, próximas demais. Mas as utopias parecem morar naquele lugar da ingenuidade; da infância, dos castelos e do final feliz. A única forma de escapar dos arco-íris é a partir de armas e uma revolução violenta: a utopia masculina, afinal, a guerra não tem rosto de mulher.
Essa fenda entre o que é sério e o que é infantil; o que tem credibilidade e o que é lúdico demais; o que é político e o que é uma fantasia; o que é digno e o que é uma brincadeira; o que é relevante e o que não é, tem, além de uma faixa etária associada, um sexo. É “generificado”, então pode ser custoso valorizar o que tendemos a perceber como mais infantil e/ou feminino como algo objetivamente útil.
Comecei a ver valor nesses pequenos arranjos recentemente: grupos de mulheres que se reúnem para discutir seus assuntos, se mantendo bem e esperançosas apesar do clima de fim do mundo. Me lembro que, há uns cinco anos, a ideia de uma ecovila autossustentável foi uma brincadeira com fundo de verdade em um grupo que participava. Nesse cenário, eu seria a fisioterapeuta, por ser suficientemente boa na massagem para livrar algumas dores.
Muita coisa aconteceu ao longo desse tempo: inclusive, descobrir que a ficção é, sim, uma maneira de criar possibilidades e ampliar nossa percepção. É difícil imaginar alternativas sendo que só conhecemos uma ou duas formas de se organizar a sociedade, de se relacionar, do que quer que seja. A ficção também acaba por antever coisas que a ciência lançou seu carimbo; salvo engano, a matéria escura é uma delas. A partir disso, tenho recuperado coisas que vislumbro para o mundo desde criança, sendo mais ou menos ambiciosas. Seja a partir de uma grande revolução ou pequenos grupos de debate.
Acho que é por aí que andam minhas resoluções de ano novo.
Listas, e listas de desejos para o ano novo, são tão parte da minha vida que deixar de escrevê-las nem passa pela minha cabeça. Fiz pequenos ajustes na maneira como as organizo e fui ficando cada vez menos ambiciosa nos desejos, mas já tem anos que “relaxar” é uma das coisas mais difíceis que coloco ali. Também percebi que ser menos ambiciosa foi uma adaptação “natural” da vida adulta, mas que acabei abrindo mão de me permitir buscar algum desejo real (e agora já nem sei se sei o que é isso). Arriscar, mesmo que fracasse. Porque o adulto em questão é mais rígido, erudito, sério, tem mais a ver com escritórios com paredes de plástico branco do que com trabalhos que estejam mais próximos da utopia, do prazer, da diversão possível. Aquilo que é bonito, que tem valor para além do valor de mercado, ou o valor que qualquer autoridade reconheça. Talvez Audre Lorde diria que é um valor mais erótico: ou seja, do grego eros, que pode significar algo como amor, desejo, energia intensa.
Em Irmã Outsider, no texto A poesia não é um luxo, Audre usa uma expressão que considero sintetizar o masculino frígido do mundo intelectual e artístico: um jogo de palavras estéril.
“Falo aqui da poesia como destilação reveladora da experiência, não do estéril jogo de palavras que, tão frequentemente e de modo distorcido, os patriarcas brancos chamam de poesia - a fim de disfarçar um desejo desesperado de imaginação sem discernimento.” Audre Lorde em Irmã Outsider, p. 46.
Por volta de julho de 2021, escrevi (e postei no meu instagram) uma poesia, mas quis fugir um pouco da minha língua. Então escrevi em espanhol:
Para no dejarme arruinar
lo mejor de mis recuerdos
y perderlo todo
en la oscuridad de mis preocupaciones
miedos y compulsiones de cualquier tipo
conductas compensatorias
porque cuando hay dolor de la infección
cuando lo bueno se vuelve en una carga
la falta se vuelve en una bendición
y no queda nada para valorar la vida
tal como es.
E em inglês:
Here's to not letting myself ruin
the best of my memories and losing it all
to the darkness of my worries
fears and compulsions of any kind
compensatory behaviors
because when there's the pain of infection
when the good becomes a burden
the lack becomes a blessing
and nothing remains to cherish life
as it is.
Três anos e meio depois, ainda torço para incorporar mais dessa mensagem na vida. Fica sendo parte das resoluções, que está sendo bem difícil de escrever. Ano após ano, parece que pouco muda, como se pouco fiz. E isso se torna um ciclo que se repete por não saber outra forma de escrever, abordar, enxergar. Sinto que estou vivendo o espírito da eterna vestibulanda procurando um norte: lendo listas de profissões, fazendo testes vocacionais, vendo grades de bacharelados, e tropeçando a cada três passos. A sensação é de passar por um ano onde (quase) nada aconteceu ou avançou, e ter (muita) fome de decidir, para seguir em frente e poder ficar um pouco mais satisfeita com o processo das coisas.
Mas como já vi várias mulheres escrevendo, o melhor a se fazer é não se entregar ao terror, à tristeza e paralisia da insuficiência. Assim, eles vencem. Então vamos aos projetos! Projetos acadêmicos, projetos profissionais, apostas criativas.
Um beijo e um ano novo com utopias possíveis,
faz parte da minha utopia morar na beira da praia e ser sua vizinha 🧜♀️