Me lembro a partir das coleções.
Adesivos, papeis de carta, diários recheados de embalagens de doces.
Quando criança, colecionei amostras de perfume por gostar muito de ver aqueles frascos minúsculos cheios de líquidos de coloração amena. Gostava de tê-los todos agrupados em uma caixinha de veludo vermelho para contemplar. E só. Nunca apliquei uma gota daqueles cheiros nos punhos ou pescoço, não passava o tempo respirando aquelas fragrâncias.
Colecionava por gostar doe volume de tranqueiras (acredito que cheguei a ter cerca de 40 amostras) e gostar de miniaturas. Aquilo que não ocupa espaço, que poderia esconder nos bolsos, carregar para qualquer lugar. Ainda me cai bem essa ideia, o portátil. Talvez pela possibilidade de direcionar ali o apego que não precisa sofrer ruptura, que pode te acompanhar até o bater das botas por qualquer terra. Tesouros que você pode carregar debaixo do braço como uma certa certeza de que não é necessário deixar para trás.
Hoje, detesto perfumes. Mas continuo colecionando poesias, e elas também podem me lembrar do que já foi a vida. Inclusive das coisas todas que gostaria de esquecer.
lembrar de esquecer que tem vergonha de dançar
para que possa reinventar seu corpo no espaçoJulia Leite
Faz bem esquecer. Ou se lembrar do avesso de agora.
Acredito que todo mundo faça uma curadoria de memórias, em algum grau, e determina inclusive quais as partes de si que te desagradam vão ser mantidas. Isso na escolha dos objetos que, nas palavras de Ana Holanda, “contam tanto da nossa história que em algum momento cruzam a fronteira da utilidade para serem mais que isso”. Nem tudo o que está sob minha asa sparks joy (essa referência parece apontar para outra vida, de tão distante desse presente); tenho no armário uma caixa pequena onde guardo mapas, cartas, fotos, cartões, chaveiros, tralhas pequenas, brindes de revista. De todos esses rastros, me interessa a posse. Saber que as tenho, que fazem parte do conteúdo afetivo dos meus pertences, que posso acessá-las, mesmo que nunca o faça. Gosto de saber que elas existem feito guardiãs, conselheiras, criaturas capazes de emitir julgamentos e conselhos, que podem me puxar para a realidade com golpes dolorosos ou ainda dar corda em aspirações robustas. Me parece que a dor é uma chave de acesso coringa para a terapia, por exemplo, e se falta assunto, você pode tirar da manga um feito de 2005 que te magoou. E ele fica ali, residindo na caixa, junto dos casacos e meias, das vestes para o mundo e para seus próprios olhos. Tão fácil, a prova de que é possível conviver com os signos do sofrimento. A carta escrita a punho por quem te prejudicou, o presente que aponta uma traição na sua cronologia. Adiantaria se esconder desses papeis? Vale mantê-los para uma consulta ocasional, ou mesmo para verificar quando for Velha e Sábia e for se sentar em sua mesa de carvalho escuro para fazer o trabalho de arqueologia da juventude quando é somente isso o que se pode fazer dos dias?
às vezes as minhas histórias não parecem minhas
e o que eu faço
com quem eu não tenho certeza se fui?Juliana Monteiro
Não sei porque guardo o que guardo. Talvez por uma pendência diagramada nas entrelinhas. Mas sei dos registros que foram destruídos, como se esperasse que isso exterminasse também os fatos, as lembranças, a materialidade. Como quem espera os sete anos da renovação das células do corpo para não ter mais resquício do toque de quem um dia te feriu. O importante é ter um ponto onde se apoiar.

As citações desse texto foram extraídas do livro “antes que eu me esqueça”, da Quintal Edições. Conta com 50 autoras lésbicas e bissexuais rodeadas pelos temas memória/escrita/sexualidade. E vamos de indicação para o mês da visibilidade lésbica.
A HQ Fun home, de Alison Bechdel, trata de suas memórias enquanto descobria a própria sexualidade enquanto lidava com questões particulares com seu pai (incluindo o luto por ele). Não gosto do formato quadrinhos, no geral. Gostei bastante dessa.
O par O mundo segundo Ana Roxo (canal) e Calma, gente horrível (podcast) me faz uma excelente companhia para pescar notícias, abordar temas complexos, ampliar repertório artístico e me distrair. Fazem tudo.
Sobre se ver como adulta: “O sentimento não vinha de um lugar de segurança ou autoconfiança, pelo contrário: eu estava aprendendo da pior maneira que ser adulto é ter o direito, o dever, o FARDO de seguir um caminho e ser responsável pelas consequências que ele pode trazer”. Esse é um trecho da última edição da newsletter da Anna Vitória, uma das minhas favoritas, de um tema muito vivo e doloroso. Vale também a nostalgia:
Nós é um podcast de histórias, e o “debaixo d’água” é um dos que fala sobre luto, memória e a necessidade de lembrar. Nesse caso, a partir da perda durante uma gestação. Mahmundi, te imploro, grave essa música da abertura completa!
Estou no segundo curso da Isabel, do projeto Um teto seu, sobre cor (expressão, não pigmento) e desenho na história da arte, e ele vai acontecer novamente em versão mais enxuta. Inspirador demais assistir suas aulas e recomendo a todas que quiserem passear pelos temas das Artes.
Falando em inspiração, comecei o curso de técnicas criativas para escrever da Aline Valek. Falar dos processos de cada criativo é gostoso demais, bisbilhotar o processo alheio traz uma sensação curiosa feito a de entrar em uma casa desconhecida e correr os olhos por todos os pertences. O que forma aquela pessoa, como essa pessoa se forma, como ela dá forma ao que tomou forma? Obrigada, Aline, pela generosidade de colocar no mundo tudo o que você faz e que torna a realidade mais interessante.
Obrigada pela companhia de sempre.
Um beijo,