Mercado criativo, maldição do conhecimento e desculpas deslavadas
Desculpa deslavada, mais uma expressão maravilhosa da língua brasileira
1.
Coisas muito típicas, mas que me incomodam muito no mercado de trabalho "criativo": evaporar com qualquer ideia de autoria de uma pessoa em relação a seu trabalho. Venda de direitos, ghost writing de qualquer natureza, “não se assina porque não tem relevância individual, é um projeto da empresa”. A ideia de coletividade, no geral, quando usada para justificar o não-reconhecimento da pessoa. Indivíduo que detém conhecimento, técnica, repertório e capacidade única de fazer o que se faz.
Normalmente, cnpjs jogam essa cartada, a mais vazia do mundo, para encobrir o que fazem; eles, na verdade, são bons. São tão bons que sequer passa na cabeça deles que alguém rompa o pacto da coletividade, da cooperação, para pedir essa coisa egoísta e mesquinha que é o reconhecimento. Créditos. Direitos autorais. Sabia que direitos autorais ainda existem? Isso vem sido cobrado com as bombas das IAs, que são, quem diria!, treinadas a partir de um trabalho humano. Não um, mas centenas de milhares de trabalhos.
Não me esqueço de uma aluna que tive e me procurou desesperada porque um trabalho que ela fez foi modificado. Alguém com um Cargo Mais Relevante pegou o arquivo dela e editou antes da publicação, e ela pretendia entrar com uma ação por isso, para não dar muitos detalhes. Ela não era bobinha; se sentia violada. Nosso trabalho faz isso com a gente. E o mercado não liga, então a única saída é a apatia generalizada. Tanto faz, não ligo. Desconexão com o que você faz, como se não fosse você, pele, sinapses, do outro lado de um computador. Mas é difícil sustentar a desconexão se no meio de um processo, começa a lambança da coletividade desmedida digna de um trabalho de graduação: cada um pega uma coisa, e no final, não temos um lindo patchwork criativo, e sim, um Frankenstein deformado. Viva a cooperação distorcida!

2.
Gostei de um podcast da Revista Gama onde um psicólogo chamado Alessandro Marimpietri usa a metáfora do malabarista era usada para dizer que fazemos mais do que damos conta. O trecho que me interessou mais foi publicado no site:
“O malabarista é bonito de ver, mas ele é escravo de uma lógica perigosa: tem sempre mais malabar do que mão, não dá conta de segurar tudo e é obrigado ao movimento ininterrupto, ou tudo aquilo desmorona”, afirma na entrevista. “Esse é o sujeito da contemporaneidade. Faz alguma beleza? Faz, mas a custa de um esgotamento, de um tipo de vida que definitivamente precisa ser repensado.”
Vou deixar só esse trecho nessa seção. Acho ele bem autossuficiente.
3.
Umas semanas atrás, engajei numa maratona de cursos online sobre metodologias ativas. Porque sim, porque vai que um dia consigo começar a dar aulas nesse inferno de mundo difícil; sempre bom saber umas coisinhas, ter umas referências. Uma das coisas mais interessantes que vi entra naquele lugar do “sem querer, arrumei uma referência pra uma coisa que já sabia, mas que não tinha fonte para citar”. São dois pontos — meio óbvios, até, mas sempre bom de articular — que esse 1 sujeito trás: Eric Mazur, professor de física.
Primeiro ponto, só para constar, porque não é realmente nada muito original: a gente não elabora meia pergunta sem ter uma mínima compreensão daquilo.
Falei que era óbvio, mas parece que 90% dos professores não se tocaram dessa obviedade, e saem falando assim: perguntas? Ninguém tem perguntas? Tudo compreendido, então? Tudo claro? Já sabem de tudo?
Um contraponto foi um querido professor que falava: sintam-se livres para falar que não concordam, mesmo sem saber o motivo. Achei estranho, mas não sei explicar. Etcétera. Uso na vida. Recomendo!
Agora, o segundo ponto diz respeito a uma metodologia de delegar o trabalho de explicar pra um aluno. Grosseiramente falando.
No caso, “instrução por pares” é o nome da tal metodologia ativa que esse cara criou para suprir uma lacuna que a maldição do conhecimento cria. A maldição? Viés cognitivo. Você, sabendo o que sabe, “esquece” que as outras pessoas não sabem daquilo também. O seu conhecimento parece típico, geral. O tempo passa, e você já não sabe mais como ensinar aquilo para qualquer aluno, porque você pode supor que o nível básico de um grupo é muito mais elevado do que realmente é. É uma gincana mental fazer esse nivelamento. O que ajuda a suprir esse vão? O Coleguinha Nerd. O Coleguinha Nerd não sabia da informação X até anteontem, então vai saber explicar pro Coleguinha Normal ou Coleguinha Falso TDAH em 3 minutos o que um professor não conseguiu em 3 horas.
Não é maravilhoso?
4.
“Não muda nada na sua vida” é uma das desculpas mais esfarrapadas pra fugir de uma discussão. A escravidão do Mianmar muda algo na sua vida? Se não, deixe pra lá, dane-se, não cutuque. Primeiro, falácia da relevância (fica mais legal quando dá um nome). Segundo, relevância individual não é tudo nessa vida. Comum demais nesse mundo individualista etc. Terceiro, talvez isso mude, sim, algo na sua vida, mesmo que não imediatamente. E pode mudar imediatamente, só que indiretamente. Então tenho um bode desgraçado de me deparar com essa frase, no geral. Até porque faz perder o contraste do bom uso dela, que seria algo do tipo: alguém implicando longamente com algum detalhe realmente irrelevante, como a armação dos óculos de alguém. Aí vale um “cuida da sua vida, que diferença faz o raio dos meus óculos”.
Um beijo,