No ano passado, fui três vezes para terras cariocas. A última vez que estive no Rio, antes dessa bateria, foi no final de 2019, com o emocional de um purê de batata, buscando um tempo de arejamento, obviamente em uma praia, mineira que sou. Tive um sono memorável (leia-se: o mais restaurador de que tenho ciência) em um sofá cama de uma senhora em Copacabana, que fez o possível para me arrancar do mormaço (fossa) que estava.
Enfim. Completamente diferentes circunstâncias das visitas seguintes. Ali, em maio, foi a segunda vez que fui a um festival, e também que saí da cidade exclusivamente para um show. No ano anterior, fui a São Paulo assistir LP; dessa vez, fui ao Rio ver as HAIM.
Foram duas noites na cidade depois de uma semana exaustiva, as consequências me afetando ao longo da viagem. Uma reação razoável foi incorporar um nada me abala enquanto reclamava horrores de tudo — obviamente abalada — e tentava manter algum ânimo pelas horas. Sendo colecionadora de histórias, até gosto das esquisitices que vivo e testemunho pelo prazer de lembrar, registrar e contar.
Algumas delas, contadas são muito breves, por mais que no momento tenham parecido longuíssimas. Foi o caso de um ônibus que levou uma hora para atravessar a cidade, lotado, e nos vinte minutos finais, pude finalmente sentar, os joelhos estourando em dor, e passei um tempo fazendo uma massagem para aliviar um pouco a pressão. Foi a deixa para o homem sentado ao meu lado começar um papo: dor no joelho? É articulação? e desenrolar em informações sobre como pé de galinha é a melhor coisa para articulações, melhor que mocotó, e dizer de várias coisas a partir disso: como tem gente que tem nojo, mas faz bem, que se deve lidar como remédio, e como era o melhor pedaço do animal para se comer, e como ele preparava. Fiz o que pude: sorri, falei, que interessante, vou dar uma pesquisada depois. Mas não foi o suficiente: você tem cozinheira?, e fiz uma interrogação com a cara, pessoas que contratam cozinheiras andam de ônibus? Não, eu preparo tudo o que como, e desenrola-se um papo sobre gostar de cozinhar, sobre dar um ânimo para o dia, sobre, no meu caso, ter sido desestimulada por estar vivendo na época em um apartamento de cozinha minúscula e desajeitada (dois metros quadrados, aproximadamente). Depois de toda a ode ao pé de galinha (eu, vegana, discretamente não cortando, mas também não endossando), o fluxo do assunto “comida” dá um giro meio inesperado: o brasileiro valoriza muito carne, mas o que é bom de verdade são os vegetais, as frutas, e começa a dizer de sua mudança na alimentação e como gostava de cenoura crua ou levemente cozinha, ainda dura. Perguntei e ele era fisioterapeuta, nutricionista ou algo do gênero; ele riu e disse, não, só gosto muito de estudar. Estudo de tudo. Tenho enciclopédias, leio todo dia. Suas descrições de estudo foram curiosas, de livros médicos até acompanhar o Enéas (aquele mesmo).
É tudo muito interessante, na verdade, pensar na falta de cabimento de algumas interações que temos, e como podemos florear na simples descrição dos acontecimentos: seja o momento extremamente normal, divertido ou pavoroso, como foi em Pipa (RN), onde responder educadamente a uma abordagem me prendeu num papo de maluco por uns quarenta minutos, com direito a uma (longuíssima) reza no meio da rua em plena noite de novembro.
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Minha cabeça circulou por um lugar que tem me ocupado bastante: subestimar e superestimar as pessoas. Subestima-se quando você acredita que um sujeito não é capaz de tomar uma decisão informada, e que se não agiu de acordo com os seus propósitos, ele está alienado. Subestima-se também quando você coloca algumas informações como inacessíveis à “dona Maria”. Esse rapaz absolutamente comum (leia-se: fora da bolha de jovens, publicitários descolados ou galera fit) soltou admiração aos vegetarianos e percepção sobre o que o brasileiro valoriza na comida; eu não soltei um comentário sobre a alimentação dele, nem falei da minha; e assim seguimos. Fiz minha associação mentalmente: mais uma vez comprovando que qualquer pessoa tem o potencial de entender posicionamentos se bem explicados, por mais particulares, como é o veganismo para mim (que, particularmente, não gosto de explicar para ninguém, exaustivo demais).
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Sexta-feira à noite, teatro pequeno, feriado de abril, uma peça de resgate de memórias da ditadura. A atriz poderia muito bem ser uma descoberta, se conhecesse as “pessoas certas”. Foi uma peça bonita, mas só chorei no final, quando o autor (e quem viveu) das histórias foi identificado no meio do público depois dos aplausos.
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Domingo, final da tarde, observando a pista premium em um festival no Jockey Club. Não acompanho o universo dos festivais, e o que precisa chegar em mim, chegará; chegou, então soube de LP e HAIM no Brasil pela primeira vez, e percebi que prevalecia no festival uma cultura meio tapete vermelho de ser, como um carnaval fora de época para aproveitar extravagâncias de estilo. Achei curioso, já que eu era a pessoa de tênis, preocupada com dores, e que pensa nesses eventos como um sacrifício de roupas, e não uma oportunidade criativa.
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Domingo à tarde de um outro ano, festival gratuito de música instrumental, mas na praça do Papa, em Belo Horizonte, sentada ao lado de um sujeito apático que fumava um cigarro de palha e mantinha uma coleira em cada tornozelo. Dois cachorros agitados. Me perco um pouco nesses momentos; quase automaticamente vou para uma posição de registro e memória. Frida Kahlo pinta as flores para que elas não morram, e me lembro de uma Amanda adolescente lendo “a culpa é das estrelas” e pensando em como era ridículo ter medo de desaparecer. Não morrer (esse medo eu tenho), mas não ser recordado. Porque, por mais que ambos sejam inevitáveis, o desaparecimento é posterior e impacta uma pessoa que já não existe mais. Mas as memórias, assim como o conhecimento, são tudo o que temos. Aquilo que ninguém nos rouba, ainda que possa, sim, se perder de nós, com o tempo ou a doença ou os dois.
Eu pinto minhas flores por prazer e por tristeza, para que elas não desapareçam de mim. Uma vez reencontrei um diário de adolescência e tive um choque com o que li: frases que reconstruíram dias que nunca iria me lembrar espontaneamente. Pinto minhas flores por tristeza, por reconhecer que o presente não dura e o que é bom se torna uma eterna saudade. Como é difícil, a alegria genuína.
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Tiro férias por essas cenas. Dessa vez, também tinha o intuito de relaxar. Mas “às vezes você faz de tudo para relaxar e o relaxamento não acontece” (acho que foi a Lili Prata quem disse isso), então me sobrou a criatividade em meio à desorientação. E, um pouco como a atividade física, exploramos movimentos do corpo que jamais faríamos espontaneamente, e observamos o que acontece.
Um beijo,
"Eu pinto minhas flores por prazer e por tristeza, para que elas não desapareçam de mim" 🥲 poxa