Em 2021, participei de um grupo de estudos sobre leitura, certa de que ia compartilhar com as outras integrantes um incômodo que tenho com certo tipo de literatura, que via como um “erro”. Depois, percebi que era, em partes, um incômodo visual (de projeto gráfico, o que acabou sendo uma alavanca da minha pesquisa no mestrado), mas principalmente subjetivo, da minha percepção, das coisas que gosto de ler.
Eu me incomodava com a perspectiva dos autores. Era uma dificuldade de acreditar nas histórias. Quando incorporavam um dialeto/gíria que quase saltavam de tão deslocadas (como quando alguém começa a falar com você forçando um sotaque); ou a tentativa de aprofundar bem em uma personagem de outro sexo e sexualidade, e soava estranho demais. Ou incorporava uma outra mídia ali no meio (como um jornal) no meio da narrativa, e me vinha mais estranhamento naquela quebra brusca.
Eu sei lá se aquilo soava estranho para um número relevante de pessoas, mas o incômodo da minha parte era forte. De vez em quando, dava para justificar pela estética: o visual que não condizia com a mensagem; se destoou, então interferiu negativamente na leitura. Mas quando dizia das falas, dos cenários e das personalidades, era uma indignação geral de pensar: o que esse sujeito acha que sabe de uma realidade tão diferente da sua? Que cafona.
O incômodo era de pensar que escritores sentem que podem falar sobre tudo e todos. Como quem é comentarista de rede social, tudólogo — com a diferença de que o escritor pode se esconder sobre o argumento da ficção, do lirismo, da liberdade criativa. Mas eu, rígida que só, não consigo “acreditar” em histórias muito distantes da vida do autor (do que pressuponho que ele saiba dizer). E sem acreditar, a leitura não engata. Já imagine a dificuldade de ler ficção desse jeito. Apenas Ferrante, Ernaux, Rosa Montero; ou seja, quem explicita a relação daquilo com a própria vida ou faz uma autoficção. Aqui dentro vive uma carrasca que quer a metodologia do texto na mesa, com uma aprovação cega de pares para ajudar nessa veracidade.
Tudologia é uma brincadeira corrente de comentaristas de qualquer coisa que tendem a se fazer especialistas em tudo. Ai de você não saber da vida de X deputado, Y cantora, o nome de cinco remédios para o estômago e os desdobramentos da revolução do Haiti. Todo mundo tem que saber de tudo ou dar a entender que sabe de tudo.
Vira e mexe vejo esses vídeos de pessoas abordando os outros nas ruas, fazendo perguntas variadas. As pessoas claramente confusas, mas se esforçando para responder aparentando a maior convicção do mundo. Especialmente homens, e parece muito comum no Brasil.
É engraçado como, por vezes, isso vem acompanhado de um jargão (e cada grupo vai ter o seu). Políticos, corrupção e roubalheira! É culpa do capitalismo, do produtivismo, do utilitarismo! Inclusive, me irrita um tanto essa conclusão definitiva de que é consequência do ___ismo (esse outro abstrato); não porque deixa de ter relação (a gente sabe que tem coisa demais de responsabilidade do bilionário), mas porque não abre espaço pra questionar nada além, e não se pode fazer mais nada com aquela indignação. Soa como: para quê discutir isso se a culpa é do outro?
Não sei de tudo, sei de muito pouco. Especialmente nesse fervor político, onde temos muitos nomes, muitos fatos, muitas interseções. Mas tem um mundo de distância entre ser politizado, minimamente informado e ser um alienado. Vejo um medo geral de se admitir o que não sabe, como se isso fosse o suficiente para te tirar da mesa das Discussões Importantes. Uma confissão que já te joga em um balaio de ignorância, assim como uma crítica (ou dúvida, questão) pode te atrelar a um negacionista, fascista. Até onde comentar, opinar? Qual o tanto que você deve fingir saber, e admitir não saber? As palavras são puro campo minado.
Na escola, não gostava de geografia, política, história. Eu via o assunto ser sempre um bando de homens e guerras e faltava morrer de desgosto (mas não sabia elaborar o motivo desse tédio). O ser humano é obcecado por guerras e sociopatas, né? E isso é o mundo, assim o conhecemos, isso é o que importa conhecer. Colônia, morte, bomba, tratados, datas. Todas essas informações se acumulam ao longo dos anos, e os anos de estudo não aumentam junto; fazemos recortes. Esses recortes sempre me deram um desespero.
Minha curiosidade sobre o mundo brotou de outras fontes e percebi: como passamos todos esses anos sem nunca mencionar um continente inteiro? (Nunca ouvi uma frase sobre a Oceania.) E tratamos os lugares a partir da comida, da língua, da escrita, a cultura. Uma parte da história que torna a vida mais interessante.
Gostava era de matemática, no final das contas. Química. Ali, onde conseguia, depois de muito encasquetar naquela gramática, dominar as variáveis das fórmulas e ter um pouco de paz: se sei resolver um, sei resolver duzentos.
(Esse gosto e sensação de controle também tem limites, porque nunca aceitei que massa deforma espaço; física é estranha demais!)
E nem só de controle sobrevive a satisfação; nem sempre cabe controle. Imagina controle num parto. Não há, mesmo. Mas isso é outra história.
Um beijo,