1.
Quando criança, eu tapava os ouvidos e me perguntava se os sons que escutava eram os sons das minhas células trabalhando. Minto, não me perguntava; tinha certeza que era isso. Os “livros de ciência” com células sorridentes não me deixavam ter dúvidas. Gostoso pensar o quanto foi estimulante para a curiosidade ter contato com essas coletâneas de livros. Não foi estimulante folhear a barsa. Gostava do manual do cientista do Franjinha explicando sobre Arquimedes e do kit com tubos de ensaio com orientações de misturas. Era imaginativa, me divertia com as instruções ilustradas.
Agora, ocasionalmente uso tampões de ouvido. Detesto. Tudo o que ouço é minha respiração, e sempre parece que tem algo de errado com ela, o que acaba alimentando uma série infinita de paranoias. Não parece que é meu corpo que estou ouvindo.
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2.
Ano dois mil e bolinha. Puxe uma revista ou abra o site de uma revista para se entreter com uma variedade de testes de personalidade. Eventualmente, criaram sites para as pessoas cadastrarem os testes que elas próprias criaram. O Buzzfeed cresceu bastante em cima dos quizzes. Eu amava. O tom era de brincadeira, mas, no fundo, o resultado gerava uma resposta: me reconheço nisso, ou não tem nada meu aqui. Compare os resultados, veja quem mais saiu igual a você, produza uma identificação. Um vício inofensivo, parece, procurar se reconhecer em palavras, se identificar com algo que você mesmo não produziu. Depois, procurar grupos de identificação. O horóscopo do jornal (e da revista, e de algum astrólogo que te mande newsletter) tem um efeito parecido. Eu amava fazer testes e ler horóscopos. Não sei o que aconteceu exatamente que a diversão virou uma grande autoridade utilitária na vida. Se procuro “teste de personalidade”, encontro o Myers-Briggs Type Indicator (MBTI), que dizem ter uma grande utilidade profissional. Muitas perguntas, é coisa complexa, dizem. O “horóscopo” tomou outra proporção, o mapa astral virou desde assunto de elevador a justificativa de qualquer característica ou decisão. Difícil entender quem é apegado ao nível de querer que todos ao seu redor validem sua afeição. Mas acho que só sinto falta de um mundo com menos “conteúdo”. No tempo de ouro dos blogs, eu me divertia com o “decorações para o signo de aquário” e “descubra qual sobremesa combina com você” (e tuitar o resultado em seguida).
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3.
Requer uma coragem especial tomar algumas decisões, e digo principalmente para mulheres. Tenho baixíssima convivência com homens para saber como funciona para eles. Mas, claro, desafiar normas tende a ser difícil, no geral. Um não bem dito, um limite imposto. Parece que dói fisicamente, que você viveria sob constantes ameaças se o fizer. Não peça espaço, não ignore mensagens de trabalho fora do horário comercial, coma qualquer coisa por educação, aceite para não deixar o outro desconfortável. Eu não funciono nessa lógica, mas uma coisa ou outra me fisga, e engulo uns sapos quando tenho o receio de uma onda de ostracismo. São coisas que costumam envolver demais o outro.
Se tornar vegetariana ou vegana estranhamente exige essa coragem. Parece que não comer animais gera um misto de irritação, indignação e pisar-em-ovos em quem come. Vejo pessoas que flertam com a ideia terem dificuldade de assumir o compromisso porque não saberiam como lidar com a família, sucumbiriam no primeiro almoço, não querem discutir ou recusar ou explicar a recusa. O que diz menos sobre ter esse “desejo de verdade” e mais sobre não dar conta de abrir mão de umas outras coisas. Eu acho. Observei essa relação por fazer parte da minha rotina, mas se fizer outras associações, me conta.
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4.
Quase sempre vejo as pessoas falarem que fizeram tal coisa porque ouviram a intuição ou que foi obra do acaso, sendo que só não reconheceram as relações entre uma coisa e outra. Não foi sua intuição que te sugeriu evitar cruzar uma ruela estreita e escura, ou se afastar de uma pessoa desagradável; foi o raciocínio, uma memória, um bando de memórias. E isso não é um demérito, não associar claramente. É, talvez, até um recurso evolutivo, quando você esquece dos fatos, mas não esquece da sensação, e pode fazer alguma coisa com isso, evitando se colocar em riscos desnecessariamente, por exemplo.
E pode ter um voto de confiança que se deposita nesse sentimento de fazer-ou-evitar-algo, não por ser algo etéreo e mágico, mas por ser um recurso cognitivo, mesmo que não seja 100% racional. Estou há um tempo elaborando uma ideia que parece um monte de partes desconexas, mas insistindo nela semana atrás de semana porque algo ali parece fazer sentido, só não é claro ainda. Então envolve passar a informação a limpo duzentas vezes em N formatos diferentes (texto livre, tópicos, mapas mentais, diagramas) e confiando que eventualmente as coisas vão fazendo sentido. A evidência que tenho é que as ideias parecem cada vez mais coesas, mas só um pouquinho.
Um beijo,