Todas aquelas paredes verdes absorviam minha visão periférica. Estar ali me colocava de frente com um sentimento bucólico que andava desejando para mim, mas que ao mesmo tempo não sabia lidar. Eu, que há pouco me sentia entre os trilhos do trem, nos estrondos do centro, me apeguei a um silêncio vazio. De repente entendi a extensão daqueles cômodos. Não haviam nem vozes, nem ruídos e nem um histórico para preenchê-los.
Acabara de chegar ali. Eu, meu gato e duas plantas angustiadas em busca de sol. Meu baço finalmente havia dado uma trégua: li que na medicina tradicional chinesa, o Baço-pâncreas tem (também) a função de abrigar os pensamentos, e a dor que se manifestava ali, naquele ponto estranho e fundo abaixo do estômago era de uma pane mental. Pensava demais, carregava tensão em cada poro. Pesadelos me vinham em sequências, dentre tantas outras explosões que aqui não importam. Agora estava só, de verdade, e o chiado que me assombrava desapareceu discretamente entre as frestas do piso de taco. Quando me dei conta, a mudez veio com uma pressão nos ouvidos, porém cerca de 800 metros acima do nível do mar, apenas.
Nunca havia ficado sozinha. De repente me peguei sem aulas para frequentar, sem o cafézinho do emprego, sem um relacionamento ou alguém para dividir o teto. A constância do ambiente me fez observar os detalhes, treinando uma memória visual e auditiva que nunca tive. Arabescos verdes na janela, piso de pastilhas hexagonais com marcas do tempo, o som do carro de pamonha e dos meus passos ocos na madeira frouxa. Era uma fotografia bonita em uma rua de pedras e cores queimadas, aconchegantes. A calmaria gerava ansiedade de tanto ser tocada. Estava ali, buscando-a, mas, de tanto desejá-la, a corrompia. Não levou muito tempo para que meu escape (ignorar a materialidade daquela angústia) fosse tirado de mim. Agora, sim, era eu, o gato, as duas plantas e a casa.
*
Os quadros que trouxe estavam apoiados no chão. Não conseguira uma furadeira, não tivera como conseguir uma furadeira agora. As prateleiras empilhavam-se em um quarto sem uso. Criatura ansiosa que sou, me vi sem um futuro para passear com a mente. Na falta dessa pequena porção de controle (a ideia de planejar e prever), tive mais dificuldade de me deslocar no tempo. De qualquer forma, não entendo o presente, então me sinto em terceira pessoa, sem reconhecer onde de fato estou. Peguei o hábito de me beliscar e morder a língua para ver se despertava de onde quer que estivesse no momento.
Transitava pelos anos anteriores, teimando em não permanecer no Aqui e Agora. O presente só poderia acontecer em realidades alternativas. Se tivesse, por exemplo, tido a coragem de prestar vestibular em outro estado, como estaria passando essa fase? Com alguém? Talvez em outro país, talvez com mais gatos. Talvez com o emocional melhor trabalhado, prateleiras parafusadas e paredes pintadas.
Também passava tempo demais olhando tintas de parede. Fazia arranjos infinitos com os tantos tons de verde, roxo e laranja que encontrava. Imaginava painéis, blocos e contrastes de cor por horas a fio, até receber o balde gelado em forma de sentença: qual é o ponto. E não via sentido em mais nada por mais um período de tempo que já não enxergava passar. E começava de novo.
Eram oito da noite, eram três da tarde. Às vezes, cinco da manhã. O "mudar de posição" na cadeira, reacomodando-me durante o trabalho remoto, progrediu para outras adaptações. Girava a mesa da sala. Espalhei matrioskas pelas janelas. Uma dentro da outra, escondendo preciosidades (a própria linhagem de bonecas), protegendo tesouros próprios. A segunda menor dividia o ventre com um desejo em uma tira de papel. Quando teria a chance de se concretizar? Velas coloridas e copos de cerâmica minúsculos transitavam entre quarto e sala. Colei pôsteres com fita adesiva por toda parte, amarrei ervas para secar na porta. Trocava-as de lugar vez ou outra, pendurando-as nos arabescos da janela.
Gostava de pensar o espaço. Quanto mais pitoresca a cena, mais sentia vontade de ouvir Patti Smith para ambientar. Uma necessidade de viver o bonito, pensei. Mas as paredes ainda pareciam vazias demais, e já tinha esgotado meus cartazes. Uma nova enxurrada de paletas de tinta surgia na tela da mente. A partir daí a sequência que seguia era previsível, mas não ligava.
Fazia chá. Cultivei um vício em arepas, preparei todos os dias até acabar o fubá. Quando dava (o estômago permitia), passava café, filtro de pano de duração eterna. Guardava o pó hidratado para usar na pele. Eram dez da tarde. Quatro da noite. O piso estufou. A parede rachou. A pele explodiu em acne. Tampava o que dava para tampar. E ainda assim os pensamentos se mantinham silenciosos, em uma recusa de deixar pistas escaparem para a superfície. Não sabia o que investigar. Não tinha material para isso.
*
Às vezes sentia falta de ter "apenas" aquela dor inflamatória no baço. Sentia que a materialização do meu estado era algo como estar sentada, a cabeça apoiada nos braços, cotovelos sustentados nos joelhos. Feito uma estátua grega, daquelas que lutam contra a rigidez.
Terminava alguns dias jogada no chão, observando o contraste estranho das cores do fim da tarde. Via da janela o sol dourado refletindo em toda a extensão do prédio de pastilhas brancas, enquanto o céu era de um cinza escuro, como se estivesse sempre prestes a cair uma tempestade (que não chegava).
Tentava criar cenas de filme para me alocar, mas não conseguia sequer experimentar a imersão nas produções que imaginava. Via o vazio de vários ângulos. Às vezes era bonita a melancolia, transmitia uma sensação meio artística, fazia emergir a vontade de pintar usando tinta a óleo e preparar queijos vegetais tipo meia cura durante semanas.
Mas, no geral, não pensava, completamente tomada por uma sonolência densa. O corpo era igualmente lento. O silêncio estava descaracterizado, difícil de perceber como uma expressão além do grande nada inchado na minha frente. As fissuras abertas nos dedos que surgiam da desatenção ao picar cebolas pareciam as tubulações que carregavam minha força vital. Todo dia liberava um novo caminho de esvaziamento. Havia sido desativada, transitando entre hibernações e compensações pontuais, momentos em que ia atrás de uma satisfação relâmpago (objeto bonito, comida saborosa, foco afiado na limpeza da casa).
Um vizinho de porta que vez ou outra ouvia falar em francês e espanhol tocava violão aos domingos. Ele voltaria para seu país em breve, seja lá qual fosse. Estourara pipoca depois de contar a novidade aos berros pela janela para não sei quem. O torpor me permitia esse estado intrigado, mudo. Parecia que as vidas continuavam correndo, então.
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Percebi e desisti, simultaneamente, desse projeto em que me coloquei para trabalhar. A ideia de que testaria todo tipo de rotina, arranjos intuitivos, relaxamentos agendados que, vez ou outra, me colocavam em um estado ativo, mas, como regra geral, rendiam frustração. Meu corpo se cansava antes mesmo de me mover.
Parecia que meus pensamentos não se silenciaram de verdade. Só mudaram de departamento e passaram a atuar mais na ponta dos dedos, caminhando mais silenciosamente ao cruzar com a cabeça apagada. Acordá-la seria minar o desconforto, e para quê permitir esse incômodo se poderia usufruir da simplicidade da apatia?
Apatia de quem não se percebe. Da ignorância, do ignorar todas as crises que aconteciam ao mesmo tempo. Não sei mensurar grandes crises. Não sei senti-las como os estouros que são. Não sabia se as formigas que observava caminhar pela porta dos fundos me viam ou não. Se entendiam a desproporção do meu corpo ali, a poucos centímetros de distância de sua trajetória. Eu jamais conseguiria entender a fortuna de um bilionário. A massa do nosso Sol. Pior: o tamanho da VY Canis Majoris, dita a maior estrela conhecida, que tanto me intrigava na fase da minha adolescência em que sonhava em me tornar astrônoma. Também não mensurava o ataque de uma pandemia. Não sabia medir a morte.
Os pensamentos, mesmo que em estado de normalidade, jamais atravessavam essa linha. Era quase um limite traçado, uma portinha miúda coberta por uma persiana encardida. Concentração alguma se estabelecia em um território tão inebriante. E, no caso, o território escapou das margens da minha pele. Fazia parte de um contorno maior. Esses pensamentos, censurei. Espertos. E me pergunto o que mais podem barrar do meu próprio contato, prezando pela minha segurança.
Eu não via a crise dos pensamentos e sua organização própria. Mas algo me dizia que o baço, sim, via. De alguma forma.
Conto escrito no início da pandemia do coronavírus, abril/2020.