Não fui em quem disse isso. O título é uma frase de Antonio Porchia, que resgatei de um livro de Alberto Manguel (2020, p. 140)1.
É uma situação diária, praticamente, essa de tentar submeter as tantas camadas de situações aparentemente banais a um pente fino buscando entender a proporção desse tudo-e-qualquer-coisa. Simbolizar, destrinchar. Quer ver? Imagine uma criança derrubando uma estatueta da sua mãe. Essa mulher pode ficar triste, irritada, aliviada (poderia ser um presente que ela odiava, e acabou se livrando dele sem precisar fazer nada com as próprias mãos).
Agora se essa tal estatueta compõe um altar sagrado. Aí lascou.
Vou te dar uma colher de chá, nem precisa imaginar nada. Só ver esse vídeozinho aqui e me dizer suas interpretações. Para além da emoção, da graça, da mágoa, talvez é possível perceber que a maior carga em uma reação é a simbólica. Eu acho isso muito curioso. Entra naquela máxima: o ser humano é uma criatura inserida na linguagem, é isso que o define, é disso que ele é feito. Mais do que aquele objeto percebido ou ação notada. Aquele valor que não passa pela peneira dos sentidos (mas que se relaciona com). Porque uma imagem de Santa não vai causar (em muitos) a mesma reação que uma boneca de mesmo custo monetário, que não representa nada ou ninguém em específico. E aí tudo depende. Talvez o preço fale bem alto, talvez quem confeccionou aquele objeto, talvez quem deu, ou o momento em que aquilo foi adquirido. Tem bastante talvez para gerar aqui.
No ano passado, resolvi tentar organizar os meus talvez de presentes. De cara, isso me deu a sensação de alívio, revanche e culpa. Alívio: colocar em palavras uma questão cara a mim. Revanche: aos que me deixaram mal com suas intenções enevoadas, tomem essa! E culpa. Quem sou eu para dizer o que os outros podem ou não me dar. Isso soa como algum tipo de cobrança? Eu quero que alguém leia isso? (Por quê?) Que pirraça, ingratidão. Dois passos para trás, percebo a culpa católica de relance, e sigo em frente. Não é esse tom virtual que quero permitir que defina minhas escolhas.
Então fui escrevendo. Primeiro pensamento: geralmente (note: geralmente, porque é tanta coisa específica que deve ser praticamente impossível mapear) não gosto de ganhar coisas. Coisas físicas, objetos. Moro em uma casa pequena e na mesma frequência que analiso o significado de coisas banais, avalio o que vale tirar da minha frente. Subtração é alívio.
Nada garante que o presenteador vai entender o que eu acho bonito. E eu faço muita questão de coisas bonitas. Objetos “que sobram” geram trabalho. Manutenção e mal estar, ou, no mínimo, um plano para se livrar daquilo. Dependendo, essa frustração pode se desdobrar em uma crise: estou colocando mais lixo no mundo! Transformar isso em lixo, fazer papel de vendedora, empurrar para outra pessoa cuidar (doação), conviver com desgosto? No mínimo tem que mexer com meu senso estético. Se me distrair, até o sifão da pia da cozinha vai ser substituído por uma versão bonita.
Pensando nas entrelinhas de um presente. Aquelas pessoas que exercem algum poder sobre você vão te presentear por carinho… Mas não necessariamente. Te dar uma roupa é, de alguma forma, tentar escolher o que você vai vestir. E qual é o papel de vestimentas em sua vida? Aquela peça pode te “deixar mais magra”. Aquela blusa pode te deixar mais “meiga”, te colocar uma camada de doçura. Aquela coisa pode dizer muitas coisas, e talvez o presenteador negue até a morte qualquer malícia. Seja roupa, comida, livro, não importa. Um presente não é só um presente.
Já viu aquele papo de que todo presente implica em uma dívida? Já viveu uma angústia de receber coisas que sabe que não vai poder retribuir?
Diga o que quiser, que são puros de coração e honestos na intenção, só querem agradar, fazer-o-bem-sem-ver-a-quem, homens abrindo portas para mulheres passar, o cavalheirismo, altruísmo, a bondade da doação (ou o alívio de se livrar de tralha?), dar cinco reais a quem te abordou na rua pedindo um trocado. Diga o que quiser, mas me parece mais possível que não se perceba a moeda de troca imposta por você do que no quão genuíno é o seu desejo de ser agradado, de buscar um favor que te devem.
(Nota: a moeda de troca não precisa ser dada pelo outro. Você mesmo se alimenta daquilo ao passo que se sente uma pessoa melhor por ter concretizado aquela benignidade.)
Tenho um pouco de medo de aceitar ajuda; é como se fosse instaurado um banco imaginário onde o empréstimo roda a juros agressivos. Tenho, no entanto, um pouco mais de tranquilidade de aceitar, dar e receber de pessoas que reconhecem que crescemos nessa tensão. (Culturas x e y e famílias com z e j valores que fogem a essa regra: não falei de vocês. Não sei de vocês, não vivo com vocês.)
Brindes podem deixar muita gente surpresa positivamente. Eu já fico é angustiada. Brinde não é de graça, o valor está embutido ali, financeiramente ou não. E volte dez casas pra questão lixo-estética-dívida-etc. Elogios distribuídos podem transtornar, e seus pais podem te cobrar uma gratidão eterna pelo presente da vida (oi, agiotagem!). Sua tia vai querer te ver com aquele casaco x horroroso só para ela se satisfazer sozinha. E umas tantas bizarrices normalizadas por aí.
Eu gosto de ganhar cartõezinhos, cafés, coisas feitas pela própria pessoa, coisas velhas da pessoa (eba! Circulando troços que já existem no mundo sem gerar demanda de produção alguma). Gosto de ganhar incensos, velas, sabonetes, coisas que se gastam, comidas gostosas, coisas que se consomem. Gosto de ganhar companhia, plantinhas, coisas úteis para uma dona de casa (mesmo um pano de chão). Gosto de coisas usáveis, que incorporo na vida para deixá-la um tiquinho melhor. De ganhar algo que um dia comentei sobre. Por isso acho difícil a arte de presentear. É preciso ter muita atenção, escapar da obviedade, ponderar. Não acho que pessoas são “fáceis ou difíceis” de presentear (normalmente). Acho mais capaz é que se conheçam mais ou menos. Ou mintam mais ou menos (para si, para os outros).
Tem um episódio de Grace and Frankie em que Grace vê caixas e mais caixas de presentes que Robert, seu ex marido, comprou adiantado para qualquer ocasião que “pedisse” por um presente. Ela fica completamente transtornada. O papel do presente ali era algo mais da ordem do checklist, como um preparo para uma viagem; separar cinco blusas, duas partes de baixo, um chinelo. Aniversário de casamento? Preciso de: um presente caro, um script para dizer coisas bonitas, um jantar. Subverteu o sentido criando um banco para não ter que lidar com a esposa, onde, ao irritá-la, decepcioná-la de alguma forma, era só pegar algum embrulhinho do estoque para compensar o que quer que seja, distraindo o foco de uma reparação intencional.
Essa série todinha é muito material para pensar. Comecei há poucos meses e tive que dar um respiro.
Eu gosto de pensar nesses pontos de ambiguidade, como a pessoa que se confunde entre ser solícita, generosa e controladora, inconveniente. Aquela pessoa que precisa te ajudar acima de tudo e se ofende caso você negue, impedindo-a de se corresponder com aquele ideal de Pessoa Boa a se admirar.
Cruzei com um story da Jéssica Petit relacionando ações ao desenvolvimento de virtudes, e vou deixar esse trechinho aqui:
Hoje não quero fazer uma bateria de indicações. Estou em Natal, escrevi esse texto ao longo dos dias, entre aeroportos e airbnbs. Mas, estando aqui, tenho usado de referência um post da Sandra Guimarães para procurar comidinhas. Então posso indicar o blog dela, ou, pra ser mais específica, um post recente com dicas para cozinhar para a semana inteira. Sinto falta de blogs, inclusive. Uso o Feedly para acompanhar os poucos sobreviventes, mas fica às moscas. Se tiver blogs e dicas potiguares, estou aceitando.
Obrigada pela companhia de hoje!
Um beijo,
MANGUEL, Alberto. Notas para a definição de um leitor ideal. São Paulo: Edições Sesc, 2020.