Em maio do ano passado, resolvi testar uma estratégia para ver se conseguiria me concentrar num livro. Andei, ladeira acima, ladeira abaixo, até um parque-mirante, três quilômetros da minha casa. Estava vazio o suficiente, e me sentei numa espécie de deck onde conseguia ver aranhas pelas frestas da madeira. Depois de um tempo, apareceram duas crianças.
— Olha, tem uma mulher ali, relaxando! Senhora mulher, por que você está relaxando aqui?
— Ah, porque tem um solzinho tão bom!
— Solzinho bom, nada, um calor insuportável!
Guardei essa troca porque, sinceramente. Senhora mulher. Mas também por não parar de chover por um segundo agora, e tudo o que queria era poder me estirar numa grama, cumprindo o desejo de 2021: tomar um sol na minha canga sem ninguém falar comigo.
(Disclaimer: não consegui ler o livro.)
Chuva já foi parte de um cenário ideal para uma versão minha. Aquela que não queria sair de casa e poderia se apoiar no tempo (clima) para só me recolher, não existir, ninguém saber do meu paradeiro e também cortar algumas alternativas do que fazer. Escolhas, não precisa ter tantas. Agora, me parece, talvez, que a chuva é um convite pra repetições. Uma espécie de conforto, te pede menos esforço mas te oferece olhos renovados. Então por aqui fiz um furacão em casa, revendo meus pertences de novo, reorganizando, revi um filme que já foi da categoria do “confort movie” e me coloquei aqui para ler as cartas que me escrevi nos últimos primeiros dias do ano, satisfeitíssima com o quanto tudo também está diferente.
Tudo isso enquanto me percebi indignada por outras repetições, dessas que acreditamos (felizes) terem ficado para trás, e que me parece ser contemplada por esse fragmentozinho da HQ Fun Home, da Alison Bechdel, onde cabe o descontexto.
Acho que todas as repetições são muitíssimo bem vindas (me repito aqui o tempo todo e sempre vou repetir isso, inclusive) e trazem, com uma barreira a menos (a da novidade, do estranho), a possibilidade de rearranjar toda aquela bagunça com outras costuras. Das poucas coisas que guardei do ensino médio, Heráclito de Efeso foi uma. Dessa história de nunca podermos entrar no mesmo rio duas vezes.
Repetir repetir — até ficar diferente. (Manoel de Barros)
As cartas de prospecção dos últimos anos foram muito parecidas, na verdade. Mas um tanto confusas, obstruídas pela insistência e pela obsessão que me é muito amiga. Aos poucos, ano após ano, abro mão. E nessa, coisas saem, pessoas saem, projetos saem, evasão que traz uma euforia boa com o que fica.
Repetir foi uma autorização que me concedi graças (também) à psicanálise, assim como o esquecimento (com um grande empurrão de Elena Ferrante, que disse, em alguma carta ou entrevista, ser uma leitora que esquece depressa o que lê). Faz parte de uma elaboração de si muito da misteriosa, esse núcleo de assuntos de que gosto muito.
E, pra mim, é possível repetir dum jeito gostoso pela quantidade de mensagens que me envio, anotando as frases de uma criança, guardando capturas de cenas de filme, trechos de livros, associações livres e voltando nisso tudo o tempo todo, enxergando um pouquinho melhor aquilo que me fez guardar o registro.
Um beijo e um ano feliz para você, revendo o que tiver para rever.