As bruxas são aquelas que não se curvam diante da coação
Quem sai ganhando quando inquietações e indagações são taxadas como discurso de ódio?
Acho muito interessante todas essas análises do comportamento de conservadores e suas desconexões com a realidade. Essa propagação virulenta da alucinação, de terraplanismo, teoria da conspiração, paranoias e por aí vai (inclusive, sobre massas de manobra e a banalidade do mal, que se relacionam bem com esse recorte de pensamento, fica aqui uma recomendação de podcast fresquinho). Mas uma coisa que me interessa mais ainda é pensar que as ideologias se alimentam de contrastes, e que a “direita” se faz muito enquanto uma “não esquerda” e vice versa. Então me interessa muito ver como a esquerda “woke”1 pode alimentar os argumentos conservadores enquanto se vale da mesma estratégia: abraçar e repercutir acriticamente um tanto de falácias (ou melhor, fake news, como já se estabeleceu) e reagir agressivamente a dissidências.
Enquanto se preocupa com não-ser (não ser visto como conservador, portanto, agir da maneira oposta como aqueles que assim se reconhecem agem), a saída é óbvia: ser isto ou anti-isto. E, claro, na prática, existem situações (no agir e no falar) onde a régua é sim-ou-não, e não existem gradações ou uma terceira aresta. Mas e quando se está tão viciado no posicionar-se enquanto o não inimigo que você se cega diante de problemas como, opa, no meu time existem perigos? Que não basta tentar ser o oposto do que você repudia?
O sim-ou-não é uma armadilha interessante. Ele é, frequentemente, reativo, porque está acoplado à emoção. Não faz diferença a resposta, a contraproposta ou a construção do sim ou do não. Só existe marcar esse x. Sim ou não. Isso acontece numa conversa com meu pai, que vem de outra ideologia política e literalmente me pede respostas complexas em sim ou não, e vem também de outros tipos de perguntas daqueles que estão “do mesmo lado”.
Chamo de armadilha porque somos coibidos a absorver passivamente essa posição. A própria linguagem nos oferece material para isso com as palavras certas e também com as expressões populares que as acompanham. De boas intenções, o inferno está cheio. Sou responsável pelo que eu digo, não pelo que você entende. Teste de personalidade, questão um: você prefere sair ou ficar em casa? Questão dois: você é mais racional ou emocional?
(Incluí o teste para fazer graça porque, meu deus, depende!)
Agora vou sair do genérico, prometo, aproveitando um exemplo fresco pra chegar em algum lugar. A Carol, da página Português é legal, fez um vídeo falando sobre como é curioso ver onde algo incomoda no uso da língua: uma brincadeira como “Boco Roso” [marido da Boca Rosa/Bianca Andrade, que participa do BBB 23] é aceitável aos ouvidos, enquanto “queride” é algo que assassina a língua portuguesa. O incômodo não é linguístico, como muitas vezes nos perturba ouvir o agradecimento simultâneo “obrigados”, que é gramaticalmente correto. Isso é bem óbvio, assim como é óbvio o quanto os dois exemplos são esdruxulamente diferentes entre si. O incômodo não é por um neologismo, que são bem usuais na fala. A língua aceita neologismos; no dia a dia, na produção científica e nos romances literários, e também acho que ninguém questiona a piada que vive em seu meio.
A “linguagem neutra” é um exemplo de sim-ou-não: adote e seja inclusivo, não adote e seja conservador. Você pode não ser obrigado a aderir, pois “ninguém colocou uma arma na sua cabeça”, mas o não usar e falar sobre o não uso vai te marcar de determinada maneira: não usou? Não inclusivo, não respeitoso, não progressista; conservador! Pescando um trecho de um dos comentários no vídeo: “tu optando por não utilizar, estarás sabendo que causará dor e desconforto”. Guarde isso que retorno logo nessa ideia.
Estou extrapolando o vídeo e a Carol, logicamente, observando os comentários e também pensando em outros contextos onde isso se discute. Alguns deles são curiosos, porque mencionam o uso de “todes”, por exemplo, pelo governo em contextos formais, o que já traz mais peso e influência. No entanto, alguns endossaram comentários no maior estilo “se o presidente pular do precipício, você pula também?”, se esquecendo de como tom e influência fazem parte do acordo de representação política que elegemos — e como isso foi um grande problema ao tratar do Bolsonaro nas eleições 2018/2022 e de seu desastroso governo não-sou-coveiro. E de qualquer político que busca uma estética “gente como a gente” para conquistar a confiança, comendo pastel com caldo de cana e usando short furado. Claro que essas escolhas fazem diferença.
Carol tem uma série de vídeos em seu instagram que lista alguns “acertos gramaticais que os brasileiros detestam” (o primeiro está aqui). Se pensarmos na motivação de um estranhíssimo bastantes livros existir na gramática e de um terceiro gênero marcado ser incluído ali, o incômodo e o motivo de fazerem parte também divergem. Falar “muita dó” e se negar a usar “muito dó” (o correto) não vai gerar nenhuma reação, ao contrário de negar um “deputade”. Porque a motivação ideológica se acende: repetir é naturalizar, e naturalizar é visar hegemonia.
“Hegemonia é o termo que ele [Gramsci] usa para explicar o processo pelo qual uma classe dominante faz com que sua dominação pareça natural ao infiltrar os pressupostos de sua própria visão de mundo como sendo o senso comum da sociedade” (Fraser, 2020, p. 35).2
Ou seja, dar ao artificial o tom de natural. Ser automático dizer deputade porque o óbvio seria: “temos N gêneros e precisamos incluí-los”. Logo, o novo neutro se deslocaria do “masculino” para um “não binário”. “Todes”, ou “todas, todos e todes”. Só me lembro quando, enquanto criança, ficava confusa e brava quando, diante de uma sala hipotética com cem mulheres e um homem, deveria me referir à totalidade de pessoas como “todos” (a menos que descrevesse com um substantivo feminino, se tornando, assim, todas as pessoas), o mesmo que o não marcado — mas assim percebido, como já disse Carol — masculino: o neutro, o padrão.
Enfim. Podemos ir para muitos lugares, traçar horas de conversas e redigir livro atrás de livro para tentar alcançar as nuances desse tema. Mas hoje, aqui, queria parar em algumas expressões: “o que custa”, “que diferença faz”, “é só uma letra”, “vai cair o braço se escrever?” e por aí vai.
Como feminista, sou abolicionista de gênero (como qualquer feminista deveria ser, penso), e não multiplicadora de gêneros. Somos todos sexualmente binários, vivemos sob a expectativa (imposição) de papeis sexuais (“gênero”) binários, e nos comportamos de maneira não binária. “À cultura patriarcal, no entanto, lhe são funcionais as identidades, porque lhe permite submeter as diferenças a um processo de uniformização e, desta maneira, administrá-las”. Assim, não concordo com a flexão, portanto, não a uso. Mas, pela lógica, estou optando por causar dor e desconforto, e não porque estou partindo de outra posição.
Quando algo se torna automático e familiar, é mais difícil ser crítica, questionar ativamente, se proteger — como é difícil, por exemplo, identificar toda violência, assédio ou agressão enquanto mulher num mundo misógino. Antes de adotar uma postura, é importante ter seus momentos de reflexão. O que significa dizer “deputade”? Estou de acordo com isso? Acredito nisso ou estou falando de um lugar de medo, me adequando a uma nova convenção, por que é isso que esperam de mim enquanto progressista (ou: não conservadora)? Especialmente enquanto mulher, cuja socialização, para além de pintar unhas e usar saias, acerta dolorosamente no lugar de se subjugar, se responsabilizar pelos sentimentos dos outros e proteger os outros em detrimento de si. A verdade e perspectiva dos outros está acima da minha?
Sabe o que é sufocar uma outra perspectiva por meio desses cortes, “que diferença faz”? Manipulação. Coerção. Chantagem.
É dizer: a sua perspectiva é inferior, adeque-se a essa crença. Porque a língua é viva, não falamos mais vossa mercê. E mistura-se fatos e opiniões pra se estabelecer um ponto. Mas que ponto é esse que não uma crença, já que não aponta para um consenso científico, e sim, para uma posição que adota algumas subjetividades?
A comoção é instrumento de coação. As histórias tristes, os sentimentos. Sofro, me obedeça. Você quer ferir, desrespeitar aquele grupo? Note: apontar essa ferramenta já se torna, em si, uma violência. As pessoas têm grande dificuldade em identificar violência. Acham que pornografia não é violência, que prostituição não é violência, mas que dizer que coação é coação, é violência. Deslocou-se a régua moral. E não se reflete mais; apenas reage. Reagimos a algumas palavras-chave que tornam argumentos inquestionáveis. Diversidade, respeito, inclusão, liberdade. Já perceberam o quanto nos orientam a atinar o radar para noticias sensacionalistas, a identificar fake news, sondando a matéria a procura de palavras específicas, muitos adjetivos, um tom animoso? Mas onde cabe a prática, então?
As pessoas [mulheres, principalmente] se compadecem do sofrimento que sequer conseguem imaginar. Então formam esse apoio incondicional porque se comovem e acham inadmissível apontar incoerências, porque sabemos o quanto dói ser desacreditada diante de nosso sofrimento (como na imagem acima), e parece que isso nos impossibilita de ser críticas perante algo irracional: a imposição de um grupo que atropela nossas necessidades. O sofrimento não é uma falácia; pessoas sofrem com a imposição de gênero, mas a única maneira de lidar com o sofrimento seria assumir suas crenças enquanto minhas, mesmo quando essas crenças atropelam pautas feministas? [assunto para um outro cafezinho amargo]
Outro comentário naquele mesmo vídeo diz: “Pode até ser uma imposição ideológica, mas é de extrema necessidade em um país (ou até mundo) preconceituoso”. Saímos, assim, queimadas, hereges malditas, não por negar as angústias específicas de pessoas específicas (não o fazemos); e sim, por não aceitarmos obedecer às demandas as quais não concordamos e questionamos. Mas no final, quem sai ganhando quando inquietações e indagações são taxadas como discurso de ódio?
Conversando aqui e ali, é fácil notar o quanto existe uma nova inquisição, uma lista de livros/nomes proibidos sendo compartilhados enquanto “mulheres perigosas” de “perspectivas intolerantes”: tome cuidado!, porque não é assim que se deve pensar. Progressistas críticas de gênero? “Vai gritar na porta de um quartel” (copiei dos comentários; olha só a não progressista na mira!). Vejo mulheres acuadas e assustadas, pisando em ovos, com medo de serem injustas, opressoras, e também de estarem ficando malucas, e serem caçadas enquanto hereges. É… Esse medo é bem feminino.
Um beijo,
Woke (sujeito “desperto”) descreve aquela esquerda liberal em que os membros se consideram afiados para identificar e combater problemas sociais, ao mesmo tempo em que podem ser persecutórios e punitivistas.
FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Autonomia Literária, 2020.
Obrigado por compartilhar essas reflexões 😊