Contra a corrente e contra a contra-corrente: mulheres e as escolhas cinzas
E se desprezar "coisas femininas" não for exatamente "revolucionário"?
Até uns anos atrás, eu tinha a impressão de que as mulheres poderiam relaxar; que o peso da subordinação feminina vinha de detalhes tão pequenos como furar orelhas de bebês1, então era fácil de conviver. Podemos frequentar qualquer espaço público, estudar e trabalhar, está ótimo; ruim mesmo é ser mulher no Afeganistão.
Sim, é muito pior ser mulher sob o Talibã, mas o memorial do feminicídio e os casos de assédio (e as reações a eles) não deixam barato. Não vou nem comentar sobre os múltiplos estupros sofridos por uma idosa francesa, ou mencionar outras medidas mais atenuadas desse mesmo problema “violência masculina”.
Pode até ser um pouco difícil entender afirmações como “o mundo foi feito pra homens” — afinal, sem conhecer algo diferente para comparar, essa só parece uma frase abstrata demais. Mas um começo é reconhecer que a jornada de trabalho foi pensada para homens (parece um privilégio ter licença menstrual, por exemplo) e que abusos contra mulheres não costumam ser nada fáceis de se provar (claro, a justiça também foi feita para homens).
Um mundo de homens é o que afirma que as mulheres foram passivas2 até “queimarem sutiãs” no século passado, e não foram relevantes nas ciências ou nas artes por não terem tido nem acesso nem a bravura de correr atrás da excelência. Ou que estiveram confortavelmente adaptadas ao destino biológico de cuidar das crias. A seletividade conveniente dessa história ignora as sanções/punições (um exemplo na imagem abaixo), os registros destruídos, a autoria furtada. E, para não pegar mal, deixamos uma Joana d’Arc e uma Frida Kahlo na lista.

Tenho uma preguiça imensa de estudar história porque me cansa ver apenas descrições de homens discutindo com homens para fazer guerra contra outros homens e “tomar territórios”. Ignoram as beguinas, as mulheres cujos feitos foram roubados por homens (assistiram Retrato de uma jovem em chamas? A ficção inclui isso como um detalhe banal). No final ainda temos a sorte de ver professores, após dez horas de aula falando sobre um punhado de homens, até terem a caridade de mencionar um livro que fala sobre filósofas mulheres; não podemos esquecer delas (presenciei na especialização que estou fazendo — a academia é extremamente masculina, claro).
A outra academia também é extremamente masculina. Nunca vi uma atenção voltada para treinos que acomodasse as mudanças do corpo ao longo do mês. Os equipamentos levam em consideração o corpo dos homens. A medicina também se esquece que sintomas femininos são diferentes; desde o infarto até a dor crônica. E por aí vai.
Meu foco agora não é sobre esses problemas escrachados, e sim, sobre um reflexo específico. Quando nos damos conta que existe essa imposição, coisas-de-mulher, podemos, em casos extremos, 1) fingir que nada disso existe e eu gosto do que gosto simplesmente porque é do meu interesse; ou 2) fugir, rejeitar para não compactuar. Reações muito comuns, as duas complicadas. Não pelos objetos das escolhas, mas pela motivação por trás.
Passa pela sua cabeça que a feminilidade, os saltos, maquiagens, a depilação, o tom de voz e maneirismos são mordaças de comportamento. No primeiro caso, pode pensar em seguida: que idiotice, isso é apenas bom senso, bom gosto, eu gosto, me sinto bem; e não se fala mais nisso. Ou pensar: não quero ser uma ferramenta do patriarcado!, vou jogar tudo no lixo, comprar roupas na seção masculina, raspar o cabelo.
Para ficar mais claro: são os casos em que ficamos condicionadas a ignorar que existe a pressão da norma e seguir nos conformes ou reagimos excessivamente no polo oposto. E era uma vez nossa agência3. Aqui não estou criticando usar esse ou aquele atributo, e sim, dois casos de pressão condicionada que te leva a um desses caminhos, destacando a existência de uma “segunda pressão”.
Não digo só sobre a aparência e o comportamento, mas tudo o que se vincula ao “feminino” (inferior, afinal, segundo sexo) e “masculino”. Desprezar mulheres e suas produções e não escutar, ler, admirar mulheres ou “coisas de mulher” (comumente: artes, decoração, gastronomia, artesanato, temas associados à natureza e cuidados).
(Nota: desprezar mulheres também faz parte da lógica patriarcal, então é contraproducente apenas fugir do “feminino”. Inclusive, te convido a conhecer a história da “fofoca”.)
Percepções extremas. O amor (conjugal), um dia, era tudo para sua vida; agora, na nova norma (a rejeição da anterior), você deve se bastar, podando qualquer desejo de se relacionar, ou “subvertendo” com relacionamentos abertos. Na estética, você vai da obsessão por um padrão para a rejeição da beleza (e não estou falando sobre procedimentos estéticos, e sim, sobre poder apreciar aquilo que percebemos). Parece que nos vemos forçadas a vender nossa alma e nos comprometermos com algo maior, a despeito de nossa individualidade.
Só os bobos não julgam pela aparência, diz Oscar Wilde4. Gosto de generalizar aparência como estética, ou seja, como percebemos e reagimos a essas percepções (ver uma coisa bonita, comer uma boa comida, ouvir uma boa música, enfim, boas experiências estéticas). Se tanto do nosso prazer está nessas apreciações, como seria possível não ter um julgamento?
Talvez, se você for lésbica, essas sejam ideias que podem fazer mais sentido, já que existe essa ideia geral da lésbica-andrógina que se aproxima mais do “universo masculino” (sendo “desfem”5) como reforço de que há uma quebra intensa com o esperado de uma mulher (ou seja, idolatrar homens e ser feminina). Muitas ficam horrorizadas com uma “sapatão de saia”, como se estivesse na cartilha seguir tal comportamento e vestimenta. Eu, vez ou outra, já fui confundida com um homem, anos atrás.
Claro, mesmo mulheres que não são lésbicas não estão livres da “culpa” por não conseguir abrir mão de algumas coisas da feminilidade. Mas quero chamar a atenção para a distância entre escolher algo porque quis e ser empurrada para ela; pela corrente ou pela contra-corrente. Esta até pode ser revolucionária quando entendemos de forma geral, um conjunto, uma ideia abstrata; mas são ideias que se materializam em pessoas, e não vejo revolução em se sentir obrigada a cumprir uma nova norma para “pertencer”.
E sobre feminilidade: aposto muito mais na ruptura com os padrões mentais/comportamentais prejudiciais. Não sei quais pegam no seu calo: talvez a subordinação, a voz mansa, a culpa constante, a dificuldade de impor limites e dizer não. Cai peso demais em códigos visuais pouco danosos (que não custam muito dinheiro, não despendem muitas horas e não prejudicam sua saúde), como fazer as unhas (já presenciei tanta mulher se culpando de gostar de fazer as unhas, sendo que isso pode ser apropriado como um hábito divertido, expressivo, um momento para se desligar do mundo e relaxar, que seja). Não que isso vá ser “revolucionário”, mas qual é a necessidade de ser, em todo aspecto, a todo tempo?
Esse texto vem de uma inquietação que tem muita relação com a ideia do que é “útil” e tem algum “valor”. Parece que são ideias tão masculinas (associando a: de fins produtivos, decoroso, rígido, atributos que geram maior retorno financeiro) e que tenho pensado nisso em relação a áreas comumente femininas. Talvez faça mesmo algum sentido afirmar que existe uma associação entre mulheres se afastarem da parte da estética que faça bem a elas como um estranho compromisso com o ideal de mulher moderna, desapegada, se aproximando de um ideal masculino.
Espero que não tenha dado muitas voltas e tenha valido alguma boa reflexão.
Um beijo,
Diria que fisicamente pequenos, “é só um brinco”, mas simbolicamente grande; é uma das expressões de um conjunto de normas guiadas por uma série de preceitos de inferiorização da mulher. Mas existem outras expressões mais graves.
Um contraponto na história é ler Gerda Lerner. A criação do patriarcado está sendo lido pela Lorenna Lemos no Mulheres lendo juntas.
Desfeminilizada, comumente descreve lésbicas que não usam atributos femininos.
Não comento sobre a liberdade de escolher, porque acredito que pra exercer alguma liberdade você precisa estar suficientemente preparada (informada) para ela. Digo de efeitos, a reação de ignorar informações/fatos para sustentar suas crenças ou de expressar repúdio feito uma rebeldia adolescente.
Ou melhor: Diz o Alberto Manguel que diz o Oscar Wilde em Notas para a definição do leitor ideal.
aff uma reflexão essencial sobre a sutileza da opressão patriarcal: não apenas nos empurra para certos comportamentos, mas também nos faz rejeitar partes de nós mesmas em nome de uma ~ ideia falsa de liberdade 🫠 lembrei da Audre Lorde: “Se eu não me definir por mim mesma, serei esmagada nas fantasias dos outros e comida viva”. daí, vaiq ser revolucionária talvez esteja menos em O QUE escolhemos, e mais no PQ e como nos permitimos fazer essas escolhas 😈