Quando conheci Marie Kondo, por volta de 2016, com o livro “A mágica da arrumação”, provavelmente comprado em um aeroporto sem grandes intenções, foi aberta para mim uma porta do inferno. Graças a deus.
Tem dois detalhes que gosto bastante nessa história dos pertences, esse veja-se-spark-joy-e-se-desfaça-do-resto. Primeiro, uma mobilidade infinita dos seus itens. O que te afeta positivamente hoje não se garante como um fiel escudeiro para sempre. Tudo tem fim porque você está sempre se reconstruindo; logo, alguns pertences param de fazer sentido. Mas, segundo e principalmente, trata também dessa abertura, do carinho pelas coisas que fazem parte da sua vida.
Posso ouvir daqui uns queixos trincando de nervoso por relacionar um sentimento positivo a coisas. Pois coloquem suas plaquinhas de bruxismo e guardem a cartinha do capitalismo para quando for mais inteligente. Não precisa ser nenhum gênio para reconhecer que o seu ambiente te faz bem e mesmo uma fronha nova no travesseiro pode alterar seu estado emocional/mental.
Sou suspeita ao falar disso. Tenho muitíssimo carinho pelas minhas tralhas, e de 2017 para frente me tornei mais e mais viciada em manter tudo o que tenho lindo. Bonito, limpo, em bom estado. Esse é o estado mais meditativo que consigo me lembrar de alcançar: qualquer momento em que me dedico ao meu espaço, às coisas que são valiosas (afetivamente) para mim.
O alívio do fim da faxina é bem parecido com aquela limpeza de fim de ano, onde você dá cabo aos remédios vencidos acumulados no armário, descarta panos de chão que estão impraticáveis, tira de casa uns cacarecos que vai saber por que comprou. Deu até pra respirar melhor depois dessa, como se os poros do rosto fossem desobstruídos ao mesmo tempo.
Sou muito fã de organização e da maneira Chinesa de trabalhar com as energias do seu espaço. É um exercício de consciência que chega a lembrar pouco daquela história de sentir que limpar a casa é limpar o furacão da própria cabeça.
Mas, voltando para a história das limpezas de fim de ano, dos descartes em massa e da satisfação imensa de ver uma casinha mais parecida consigo, percebi alguns desencontros com o jeitinho ocidental. Somos ansiosos, afobados, apressados, consumistas, compulsivos. Deve ser alguma coisa na água, estados com mais ou menos cloro. Fato é que essa abordagem de Marie pode ser um pouquinho estranha de se trabalhar muito literalmente, como se realmente precisássemos de uma série de traduções para que aquela ideia se adapte para o nosso contexto. Não é toda casa que tira os “sapatos de rua” na porta ou que faria uma espécie de “altar” para dar destaque ao menor dos pertences. Ou trataria cada peça de roupa como um ser cheio de sentimentos, merecendo ser acariciada e anunciando se preferem ser gentilmente dobradas ou permanecerem estendidas.
A maneira chinesa que mencionei é a conhecida prática do feng shui, que diz do movimento e estagnação das energias na casa. A partir do baguá, ou mapa energético de sua residência, organiza-se cantos para corresponder a uma intenção, uma área da vida, enfim. Gosto especialmente das noções do inconsciente que caem como uma luva de bom senso: não colocar coisas acima da cabeceira da sua cama gera um stress inferior na sua mente pelo risco óbvio daquilo cair e te ferir durante seu descanso. E me parece, na verdade, como um exercício lógico de tomar distância. Pensar através de um mapa, se programar através de uma outra visualização e organização de informações.
É aqui onde quero chegar e insistir, e imagino que seja um lugar fácil de reconhecer.
Um mapa, sendo signo de um espaço (ou do que quer que ele esteja representando), te escancara um espaço entre você e aquela realidade. Te permite enxergar coisas e relações de uma maneira sintetizada, ocultando algumas informações que sejam ruído naquele fim, e esclarecendo as partes mais relevantes. Nos deslocamos em relação ao conteúdo enquanto mudamos a mediação. Na prática, saímos do calor do momento, explorando outra presença, ponderamos, deixamos esfriar enquanto tomamos distância.
Tomar distância é criar esse esquema que te permite ver o que antes estava olhando de maneira dispersa. É o segundo que toma antes de responder uma pergunta, ou a hora, a semana inteira, a caminhada que faz para fermentar as ideias, é deixar a vida correr um tiquinho antes de engajar no bate-bola-jogo-rápido de Gabi. Esse é o lugar mais amaldiçoado da vez, o de se demorar antes de reagir, e demandar seu tempo para elaboração. Se vacilar em frente aos degraus, vão tentar te empurrar para que capote, porque o importante é continuar em movimento, independente de qual. E daí vem todas as insanidades de produtividade e produzir, e perfeccionismo, e engajar no autocuidado, e autonomia como produto, e tornar o lazer mais uma tarefa, dentre tantas variações que uma existência afobada pode proporcionar. Atividades que entram na eterna lógica de trabalho e, para “além disso, acabam em numa agitação tão nervosa” (Han, 2021, p.44).1
Pois exercite a permissão de se dar um respiro longo o suficiente para que decida como mover seus móveis, e interpretar seu mapeamento. Se permita um mapa, uma camada de clareza, uma pilha de “talvez” escancarada na sua frente depois de seu destralhamento. Uma estante de livros pensada para pegar poeira, cheia de dúvidas. Uma casa não tão minimalista, que abra espaço para incertezas, ao invés da enxuta que remete a fugas dos confrontos da mudança, talvez tenha mais a ver com a maneira como levamos a vida.
Por aqui, reorganizei meus livros para que uma estante guarde aqueles mais robustos ou em tonalidades que não batem tanto por agora. Recentemente, um deles chegou a me cumprimentar, e senti alguma paz ao reconhecer que, mesmo depois de um desencontro desgostoso em 2020, optei por mantê-lo ali, mais acima da linha dos olhos, até que nos entendemos agora, em 2022.
Depois do ápice do inverno, é só ladeira acima. É como uma versão macro do primeiro dia de lua nova, para fazer uma comparação fácil. Esse é o yule, solstício em que atravessamos a noite mais longa do ano e, na wicca, é um convite de celebração introspectiva. Tem a ver com limpeza e novos ciclos, olhar para si com atenção e queimar (simbolicamente) suas dificuldades. Eu não sou wiccana, mas tenho gosto por alinhar a vida a ciclos da natureza, então muitas paganices me interessam. Literal como sou, preciso exercitar a flexibilidade ao me deparar com, por exemplo, a proposta da limpeza que a estação sugere. Trouxe, então, essas divagações para as comadres literais, mas também as primas de personalidade que poderiam pensar um tiquinho no manejo da casa, das coisas, dos planos. Por aqui, quero programar o restante da estação para pensar sobre os planos. Uma outra história, porém.
Obrigada pela companhia e um beijo,
Sociedade do cansaço. Byung-Chul Han.
Adorei o texto, Amanda! Também sou dessas que adora fazer uma faxina pra tirar o que não combina mais comigo e ficar só com o que tem história pro trás. E amo mexer com as energias do ambiente kkkk