Faz um tempo desde que me dei conta que qualquer prática social comum pode ser comercializada — e surge aí uma nova profissão. Claro, o contrário acontece também (não sei qual foi a última vez que vi um cobrador de ônibus, e também não faço ideia se lanterninhas ainda existem), mas enquanto essas profissões são “superadas” por evoluções tecnológicas (você pode pagar seu ônibus com código QR, por exemplo, apesar do “fim” do cobrador preceder isso), alguns novos ofícios parecem ser é sintomas de um problema maior.
Exemplos.
Precisaríamos (tanto) de doulas se as gestantes/mães tivessem uma boa rede de apoio (leia-se: pessoas próximas com quem contar antes, durante e depois do parto) e os profissionais obstetras fossem confiáveis?
E a demanda pelos “filhos de aluguel”, acompanhantes para momentos variados no dia a dia de idosos? Ou seu xará de empreendimento, o “amigo de aluguel” (personal friend)?
Delegamos nossa memória a aplicativos; nossa confiança, a doulas; nossa sociabilidade, a pequenos contratos. Digo não exatamente como uma pessimista, mas apenas observando o jogo maluco entre não ter tempo, transferir tarefas e se perceber em uma vida um tanto solitária e monetizada.
Sobra pouco de uma visão panorâmica nas nossas vidas, percebo. Somos viciados em especialização, com seus ônus e bônus. O mundo não fabrica especialistas desde o modelo fordista? Cada funcionário executando sua pequena tarefa em uma extensa linha de produção. Na maior parte do tempo, não sei de onde surgiram os trabalhos que caem no meu colo, e nem sei quais fins os levam. A primeira vez que ouvi sobre “medicina holística”, pensei que todos os nossos problemas seriam solucionados. Deixar de ser órgãos, virar corpo. Mas não mudou nada, não. Fingimos que superamos a esteira-linha-de-produção, mas ela costuma viver ali, especialmente nas universidades, lugares meio isolados da vida corrente, organizadas em departamentos “áreas do conhecimento”. Produzir especialistas para concursos restritos a especialistas para repetir sobre suas especialidades. Assim se forma quem forma tantas outras profissões.
Não tenho muita paciência para o modelo especialista, então ando futricando os lugares que me ajudariam a ter um conhecimento mais abrangente sempre que possível. Mas é difícil.
Fico lembrando do meu pai anos atrás, dizendo que não deveria ter esse tanto de gente na universidade; que não tem necessidade, e muita gente poderia apenas procurar um curso técnico. Na época, fiquei indignada. Agora, já não sei; talvez tenha gente que se beneficie de fugir dessa burocracia. Colocamos (eu inclusa) a mudança de vida na conta de uma instituição. Não é a universidade que vai mudar sua vida, teoricamente; é um título impresso num papel que pode te proporcionar salários um pouco melhores de vez em quando. Ainda vivemos as marcas de uma escola que surgiu para cumprir uma função diferente para cada classe social, parece, e não deixa de ser triste correr atrás de uma melhora que nunca vem.
Quando era mais nova e via livros ou exposições sobre gênios dos últimos séculos, ficava assombrada pela quantidade de “títulos” que acompanhavam seus nomes. Homens com uma série de vocações/conhecimentos a se ostentar. Sempre lembro do Leonardo da Vinci primeiro.
uma das figuras mais importantes do Alto Renascimento, que se destacou como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico.
(Um episódio de fonte: Wikipedia)
Polímata (e não tudólogo) é o conceito que denomina esse sujeito que se dispersam (no bom sentido) em várias áreas do conhecimento e “dominá-las”. Também é o nome de um livro que faz essa cronologia Leo até Susan Sontag, que eu conheço como a moça dos livros de fotografia.
Então a partir das decisões do Leonardo de ser matemático, engenheiro e +15 funções, vivemos as consequências abrindo o Linkedin e vendo vagas pedindo para designer fazer vídeo, pesquisa, animação e social media.
(Nem sei o quanto estou brincando. Entre a sobrecarga com múltiplas funções e esteira de produção, quem tem boas referências/estruturas profissionais é rei.)
Estou (paradoxalmente) fazendo uma especialização para ampliar meu campo de visão, e tomar emprestado conhecimentos de algumas áreas que considero relevantes para mim. Não sei se o título vai ser valorizado (e olha que sou fã de um título), mas espero que não leiam para sempre essa dispersão como perda de tempo (enquanto seguem soltando um monte de palavras tão vagas que chega a ser tosco; é múltiplo pra lá, diversificação e competitividade pra cá, diferencial blá).
E me lembrei aqui, uma última coisa. De serviços gerais em casa, já pintei parede, lixei e rejuntei piso, instalei uma porção de coisas nas paredes, troquei chuveiro, enfim, um bocado de coisas básicas, mas que me fazem ter ferramentas guardadas. Ferramentas, materiais. Foi essencial, por exemplo, quando tive um problema com minha porta de entrada: estava presa dentro do meu apartamento, e precisamos articular um trabalho simultâneo, eu por dentro e o chaveiro por fora. Essa não foi a primeira vez que ouvi “ainda bem que você tinha essas ferramentas”. Digo isso só para acrescentar a sugestão: tenha ferramentas, mesmo que não saiba fazer o melhor uso delas. Mesmo que muito fora da sua área.
Um beijo,