Numa aula sobre filosofia antiga (ou seja, sobre Grécia), escuto: a cultura grega é contemplativa, e não interventiva; o grego reconhece que a natureza tem suas leis próprias. E também: a filosofia nasce na praça pública, junto à vida cotidiana e do povo, todos os gregos poderiam expressar e discutir ideias. São considerações pouco específicas, mas muito bonitas. Respeito ao meio ambiente, pouco daquela erudição do conhecimento que se produz apenas dentro dos portões das universidades. Desperta um interesse genuíno, mas é uma das grandes ambiguidades que experiencio: a aversão também é muito forte.
Tem alguma coisa ainda mais forte que me repele do assunto (filosofia/filosofia grega). Não sei dizer como essa antipatia começou, mas acredito que esteja relacionada com a forma da coisa — que, além de descontextualizada (informações que não se ancoram na cultura ou cotidiano), também era tomada como desimportante. Um exemplo.
Me lembro nas aulas do ensino médio da passagem breve pelos filósofos pré socráticos: muitos nomes citados, talvez uma dúzia, muitas teorias sobre a origem do mundo para além dos mitos. Os textos são apenas fragmentos, difíceis de analisar. Também não exploraram o metafórico que é dizer dessa origem ser o fogo, ou a permanência, ou o que seja. Vários homens, uma cronologia dispersa, professores que tendem a ir a Marte e voltar, empolgados com seus próprios pensamentos, mas sem conseguir trabalhar com a organização daquele mundo, como eram essas cidades, essas “escolas”, e dizer que a origem do mundo é a água não significa que uma gota de água se multiplicou até se transformar nesse universo. É só o que um data show projetando tópicos consegue explorar.
Uma aula que é construída com slides, avançando rapidamente por informações duras, ou que é puro fluxo de pensamento, de qualquer forma, sem considerar pausas ou descansos, períodos para assimilar e decantar alguma informação. Descuidos com a forma.
Descuidos com calhamaços livros de filosofia feitos sem projeto, descuidos com outras construções da filosofia que não se resumem à Grécia. Queria muito uma tradução de textos clássicos que se adapte à linguagem corrente. Não digo super coloquial, mas menos sisudo. Existe? Realmente acredito que isso tudo dificulta para um bocado de gente se levar a sério quando pensa: qual é o sentido da vida? ou qualquer outra questão dita filosófica. Logo se aborrecem, que bobagem, inutilidade pensar sobre isso; e não se permitem refletir sobre nada menos objetivo que a cotação do dólar. Com certeza a onda de layoffs nos EUA tem influência nisso!
Talvez filosofia não caiba nesse lugar ambíguo para você. A mitologia grega cativa muita gente desde crianças. Para mim, nunca caiu bem, mas acho que é geral o desgosto pelos textos maçantes, a falta de acompanhamento para destrinchar suas teorias e mesmo acompanhar toda essa galera que os gregos criaram. Talvez tenham te cativado com Hércules (Disney) ou Percy Jackson ou Kaos (Netflix, recente, uma série bem divertida, inclusive. Deixo aqui uma sugestão de discussão deliciosa a partir dela, vale assistir).
Mas a maior questão que quero destacar é o quão difícil foi discernir o que era problema de “forma” do que era desinteresse pelo conteúdo. Seja pelas aulas de ensino básico, ensino superior, cursos livres, podcasts ou vídeos no YouTube, como é difícil ver uma boa exposição sobre filosofia! Estética (percepção) importa tanto, mas parece que para manter essa aparência intelectual, é preciso conservar o sofrimento e tédio dos alunos/leitores/usuários. Quem “atravessa” essa barreira “merece” o conhecimento.
E uma pena, porque o interesse é genuíno, mas é difícil de sustentar no meio de tanto afeto estranho. Afetações. bell hooks optou por manter a linguagem simples em seus textos ciente do efeito que isso tem nos outros. Ou, para não falar só sobre o texto, bastou uma professora boa na escola para eu amar matemática. Para hoje, quero deixar alguns pedaços dessa filosofia grega antiga que podem te gerar alguma curiosidade.
Sócrates, dialética e maiêutica
Sem o desejo de apenas convencer o outro, a ideia geral da dialética é despertar os questionamentos a partir das trocas, e enxergar que a resposta (a verdade) não se resume a um discurso ensaiado ou uma opinião. Sócrates usava a ironia como recurso para afiar as respostas e melhorar os argumentos (sem constrangimento). Eu visualizo um “mas será que isso é revolucionário mesmo? Será?” para, sei lá, uma defesa calorosa da marcha das vadias (não acontecem mais, né? Espero). “Por que seria? O que você entende como revolucionário?” e assim segue espremendo as respostas até que o interlocutor “produza” seu conhecimento (maiêutica).
Pela etimologia, maiêutica é parturiente no parto de ideias1. O parto acontece com o reconhecimento das limitações (e contradições) da maneira como se pensa como caminho para saber algo diferente. E reforça também a posição que não é o Fulano da Silva que possui o Conhecimento. Mas é possível auxiliar a extrair esse conhecimento do outro. Talvez seja familiar para reconhecer que professores não vão proferir o Milagre de inserir um Saber na sua cabeça. O estímulo, sim, é possível.
Quando vemos pessoas muito firmes em suas crenças, percebi que existe uma orientação geral de se desarmar não por afirmações, muito menos por brigas, mas por perguntas. “O que é _______ para você? O que você quer dizer como ____?”. Uma pergunta leva a outra, até que a contradição que você identifica se torna explícita para o outro.
Uma história escrita por Platão conta que Sócrates conseguiu “ensinar” geometria a um homem escravizado não apresentando uma fórmula, provando e aplicando exercícios, mas através de uma sequência de perguntas; o cara chegou na resolução do problema sozinho. Outra história é de que ele saiu andando por Atenas e cutucando aqueles que se pensavam inteligentes usando de suas questões. O “conhecimento” era tão frágil que logo se desestabilizavam. O desejo de parecer um erudito sábio sem ser sempre resistiu nesse mundo, aparentemente.
O que me faz lembrar de um professor que disse uma coisa muito importante numa aula de uma disciplina do mestrado. Foi algo como: se tiver dúvidas, me interrompam e falem; mesmo que não tenham certeza ou saibam elaborar direito qual é o incômodo. A dúvida é uma inquietação, e não necessariamente uma que sabemos expressar perfeitamente em palavras.
Heráclito e o devir
Heráclito é um bom exemplo do que seria a metáfora dos elementos como origem do mundo. O fogo é o movimento, representa a transformação, fluxo constante, e não uma literal fogueira que construiu o universo. Lembro que esse foi o filósofo que trabalhei numa apresentação escolar, focando no fragmento: "Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, nem tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; graças à velocidade do movimento, tudo se dispersa e se recompõe novamente, tudo vem e vai". Ou seja, o foco está na instabilidade e no fluxo de tudo o que existe.
Mas a instabilidade também guarda uma ordem, uma periodicidade ou ciclicidade. Acho que importa pouco o que seria essa divagação, mas fica, para mim, um recado de que supostas ambiguidades não são reflexos de incoerências que se anulam. Estou escrevendo em cima disso, na verdade. E a coisa do rio, a perpétua mudança, bom, pode ser óbvio em muitos casos da vida, mas talvez você se esqueça disso de vez em quando. Onde existem ciclos para além dos nascimentos-e-mortes, das estações do ano? Na história, no contexto social?
Platão, diálogos e a caverna
Outra aula que consigo me lembrar e parece suficientemente difundida: a Alegoria da caverna se relaciona com a diferença do mundo das ideias e do mundo ilusório, das aparências. Acho mais fácil explicar a partir de uma imagem, caso a história não alcance sua memória.
Alegoria é uma representação figurativa para facilitar a compreensão. Platão fala sobre prisioneiros acorrentados dentro de uma caverna desde o nascimento; nunca tiveram contato com nada para além de sombras nas paredes. Elas são a única realidade que conhecem, mas são apenas projeções feitas com uma fogueira.
Quando um dos prisioneiros consegue fugir e sair da caverna, é ofuscado pela luz do sol, e leva um tempo até acostumar as vistas e ver o mundo real; ele se dá conta de que as sombras são apenas distorções da realidade. Porém, quando volta para a caverna, partindo da sensação de dever libertar os outros, é ridicularizado. Eles optam pelo conforto do que conhecem.
A caverna representa o mundo das aparências, e o exterior é associado à verdade ou ao conhecimento. O processo de educação é a libertação e a adaptação à luz é parte da dificuldade de se “chegar na verdade”. São abstrações que falam sobre ignorância e busca pelo conhecimento.
Gosto dessa história em partes. Algumas, como a ideia de alcançar uma Verdade, questiono. Mas gosto do impulso dado pelo desejo: sem paixão pelo conhecimento, não podemos perseguir a verdade. Nessa busca, o apaixonado pela verdade se desorienta (cegueira pela luz) pela multiplicidade de opiniões e ideias, e, com o tempo, pode contemplar; não como uma inércia, mas no sentido de não precisar lutar contra certas ilusões e ter um pouco mais de paz. Algo como: você sustenta muitos receios e se censura com medo de um “cancelamento”, mas eventualmente entende as dinâmicas de coação, e essa perturbação cessa. Não é se acomodar com o que se sabe, mas sim não cair mais em algumas armadilhas.
E penso que podemos tirar daqui a própria desconfiança da nossa percepção: não é porque os olhos veem que aquilo é o que é. Afinal, somos enganados pelos nossos sentidos com truques de mágica2, perucas, filtros, maquiagem e Photoshop. Muitas vezes não sei dizer se o cabelo é real ou aplique, mas isso não muda o que ele é. Não é sempre que dá pra confiar tanto assim no que percebemos.
Uma última observação é que gosto da ideia (e não do resultado) de se escrever em diálogos: a maior parte das obras de Platão estão no formato de conversas. Mas, voltando umas casas atrás, acabo tendo mais aversão à linguagem.
Contemplação
Voltando ao começo: a antiguidade clássica (e a idade média) valorizavam a contemplação. O tempo livre era o caminho para a salvação, pois acreditavam que preencher todo nosso tempo nos priva de reconhecer a luz divina. Para chegar à verdade, é preciso estar pronto para “receber” essa verdade em revelações através de meditações. Quando isso se perdeu? (Sabemos, maios ou menos.)
Bom. Filosofia não se resume a Grécia, claro, mas é o que mais se difunde por aí. Acabei puxando esse fio não só pela ponta das aulas que tenho assistido, mas também pelas referências estéticas do mediterrâneo que tenho admirado, de decoração até Mamma mia. Mas a própria série Kaos e a discussão que mencionei puxando a mitologia para nossas referências atuais demonstra, pelo menos para mim, o quando análises dessas séries são um outro entretenimento. Todas essas revisitações podem ser.
Um beijo,
Quem disse isso não fui eu, foi Peirce :)