(Estou relembrando esse álbum maravilhoso esse ano.)
Venho pensado sobre como e com quem compartilhamos pensamentos, ideias, banalidades. Seja escrevendo, seja entre amigas. Seja em redes sociais, embora nem seja algo marcante para mim; não é algo que faço (mais; fazia, na época que sustentava blogs). Nas redes, estamos cronicamente disponíveis e acessando milhares de detalhes da vida de milhares de pessoas a todo o tempo: uma foto misteriosa de uma parede de Hortifruti, do espelho do elevador, mostrando sua roupa, do café (identificado ou não), um meme, outro meme. Mas, para além disso, me dei conta que sinto falta daquele núcleo secreto de informações. Sinto falta de ter segredos.
Ter um mundo muito particular onde ninguém acessa. Falo por mim quando digo que não consigo mais escrever diários, e fazia tanto isso. Não tenho mais vontade. Parece que não tem mais esse prazer, já que esse campo de texto e minhas amigas são meu diário, e sobra muito pouco para sustentar sozinha.
Não é como se a vida inteira estivesse aberta para o mundo ver, mas como se boa parte do pensamentos importante acabam sendo compartilhados. É uma delícia socializar ideias, compartilhar para discutir e aprimorar sua própria perspectiva sobre o mundo, além de ser muito importante pra sustentar relações um pouco mais profundas. Mas agora eu simplesmente queria manter segredos.
Não são segredos no sentido corrente: a conspiração; o medo do olho gordo. Só segredos que ajudem a relembrar os contornos da sua individualidade. Que, por não serem afirmados com a colega, com um post, com a namorada, com a amiga, te dão alguma liberdade de se movimentar sem a pressão de dar uma satisfação.
Porque alguém vai te perguntar, para puxar assunto: e a viagem, e a mudança, e a faculdade, e o trabalho, e aquela coisa que você queria planejar, como anda? Por simpatia, curiosidade, para puxar papo, para oferecer ajuda, para demonstrar que prestou atenção e se lembra (ou pra qualquer motivo negativo, não importa), mas tem coisa mais gostosa do que se dar conta da sua miudeza e irrelevância?
(Ter, tem, mas, já sabe.)
Por mais que essas interações sejam genuinamente uma manifestação de interesse, elas existem e acabam te lembrando que tem alguns olhos por aí, te observando. E às vezes é tão bom passar desapercebida.
Parece que existem os segredos-por-bem e os segredos-por-mal.
O primeiro: lembro que, há algum tempo, a discrição de não contar seus planos era uma regra para se proteger. O segredo era algo desejado. Aqui, entra o olho gordo, a superstição. Você esconde o que é importante para contar apenas na hora de celebrar a conquista.
O segundo: a vergonha. A não-conquista, o trauma, o erro. Eu respondo diariamente perguntas em um caderno que repete questões para você durante cinco anos (o famoso Q&A). Uma das perguntas é: você tem segredos? Custa um pouco lembrar, parece que os segredos esgotaram. Quando me lembro, eles estão no território dos Traumas Profundos. E eu queria que os segredos também fossem algo mais divertido.
O twitter foi de “O que você está fazendo?” (2006) para “O que você está pensando?” (2009). Foi uma virada nas redes sociais. Cada vez mais, extraíam o íntimo dos seus pensamentos de você, instigando a compartilhar o que quer que seja, ou a partir do seu comportamento, interpretado via algoritmos. Você também tem muito contato com pessoas que abrem demais a própria vida e atiçam a curiosidade sobre suas coisas, seus projetos, seus planos, seja contando antes que aconteçam ou falando do processo ou contando do depois. É importantíssimo ter espaço para falar sobre projetos, processos e como eles se concretizam, mas não é sem efeito colaterais.
O segredo, o estranhamento ou a alteridade representam barreiras à comunicação ilimitada.1
Por isso, queria soltar aqui um convite à introspecção. Não sei o que introspecção significa pra você. Pode ser manter algumas coisas longe da sua sessão de análise ou terapia. Pode ser escrever um diário. Pode ser meditação. Você pode aprender alguma coisa e não contar pra ninguém. Pode deixar de falar algumas coisas para suas amigas ou cônjuge. O que importa é conseguir criar esse lugar e sustentar essa pequena privacidade significativa.
Talvez não tenhamos cabeça para lidar tanto com os bastidores, as ideias, os processos dos outros, e isso impacte na nossa maneira de entender a introspecção. Talvez, mas só talvez, o esforço para construir essas discussões onde se compartilha tantas ideias mina um pouco sua autonomia pra elaborar no seu tempo, do seu jeito. Talvez.

Quando a gente fala sobre esse “espaço privado” sendo tomado de novo na atualidade, imagino que seja comum pensar nesse lugar da vigilância, do roubo de dados, das implicações de existir cronicamente na internet. Mas eu também queria pensar sobre a subjetividade que vai se encolhendo: seja porque ela acaba sendo compartilhada entre nossas redes de apoio por completo ou nas redes digitais, de modo aberto. Afinal, o que é bom é pra se compartilhar.
Lembro de ler com o Byung-Chul Han que o erotismo mora no mistério (eros, desejo, amor). Não na nudez absoluta (o contato com “tudo” daquele corpo), e absurdamente diferente da pornografia (que é alienante, vazia e, para dizer como feminista, degradante e violenta). Oferecer “menos” envolve um encontro mais genuíno. Para não falar de corpos, mas de ideias, pensaria que, por uma lógica parecida, é importante aprender a conviver com menos compartilhamento — inclusive conviver com a realidade de que é impossível compartilhar tudo e conhecer o outro inteiramente. Por mais íntimo que esse outro seja.
Um resumo: segredos não precisam ter a ver só com a vergonha, e podem ter a ver com o que existe de interessante em/para você. Para algumas coisas, reservar esse lugar de guardar, matutar em silêncio, deixar fermentar.
Um beijo,
Byung-Chul Han, Psicopolítica, p. 20.