(Nota: todos os tópicos atravessam temas sensíveis — violência contra a mulher —, sendo que o 2 e 3 têm spoilers/comentários sobre a série Disclaimer e o filme Substância.)
Mentindo com gráficos
Ontem, 25 de novembro, foi o dia internacional de combate à violência contra mulheres. Observei postagens divulgando a data e divulgando dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ótimo. Mas vi também comentários com um argumento muito comum: não é que temos maiores números de violência, e sim, o aumento da visibilidade do tema, da divulgação dos canais denúncias; isso levaria a mais denúncias. O dado alarmante automaticamente se torta algo mais ameno; respire aliviada.
Quer dizer que é impossível chegar a essa conclusão? Não. Temos internet, melhora dos canais de comunicação e o número de delegacias especializadas aumentou. Mas se reduz a isso? É como dizer que o número de cirurgias plásticas cresceu em decorrência do aumento da população. E a violência masculina na esquerda, a violência “redpill”, a subnotificação? (Eu nunca formalizei uma denúncia, embora não faltaram ocasiões, infelizmente, e essa é uma realidade extremamente comum.)
Usamos dados para levar adiante pesquisas para conhecer a nossa realidade e tomar decisões a partir delas. Privadas ou governamentais. Acontece que você generaliza tanto uma situação, tornando-a um dado (12% da população, 1 a cada 10 mil homicídios…), que tratar dela apenas como isso — um número, um valor, um percentual — te permite tecer qualquer interpretação que “números” respaldem.
Além do viés (perspectiva), temos o visual. Gráfico de barra, de linha, donut, diagrama de Venn, mapa de calor, mapa mental. Temos N maneiras de representar valores, além de escolhas com escala, volume, ângulo, cor e outras informações que tendemos a dar pouca relevância na leitura daqueles dados. Que diferença faz?

Depois, faça o exercício de recontextualizar os números com os quais você cruza. Capaz de perder fonte e informação no meio de tanto esforço e bossa.
Mentindo com fotos
Disclaimer é uma minisérie de sete episódios baseada em um livro de mesmo nome, disponível na Apple TV. A história foca na repercussão do momento em que Catherine e Jonathan se conheceram, cerca de 20 anos antes do “presente”. Jonathan morre nesse passado, e sua mãe escreve um livro (que seu marido encontra no “presente”) especulando o que teria acontecido com o filho, culpando Catherine agressivamente. Ela se baseia apenas em um punhado de fotos que seu filho tirou dela. Durante a maior parte da trama, somos levados a odiar a piranha traidora. O pai de Jonathan faz o possível para atormentar a mulher, “expondo a verdade” para seu marido, filho e colegas de trabalho.

Não deve ser supresa para nenhuma mulher, pelo menos, que o suposto caso se tratava, na verdade, de um estupro, horas de abuso registrado, e apesar de não ter nenhum sadismo em mim apreciando todas aquelas cenas (tanto os “fatos” quanto os delírios da mãe do rapaz, que fez de tudo para preservar boas memórias dele, apesar de evidências contrárias), existem elementos de alívio: a morte do abusador; o divórcio; a reconciliação de Catherine com seu filho; o (pouco provável, mas serviu na ficção) momento de virada do pai de Jonathan em que ele passa a acreditar na versão de Catherine.
A fotografia surgiu como documento verídico, registro de fatos. Nunca precisou ser manipulada com efeitos de instagram ou montagens no Photoshop para contar suas mentiras.
Mentindo com drogas
A maquiagem que mascara as imperfeições, o remédio que mascara a insônia, o botox que mascara o envelhecimento. Estados Unidos e Brasil, os dois maiores mercados de cirurgias estéticas do mundo, sendo o primeiro, uma imensa referência que importamos, pelo bem ou pelo mal. A dor da realidade (somos mamíferos, finitos, mortais e reféns de um mundo que não foi feito para mulheres) é grande demais, e o mercado faz questão de te vender soluções provisórias, as quais você deve recorrer constantemente, como se comprasse um sabonete.
Não relaxaremos, então as drogas nos fazem dormir; maquiagem não será “arte”, e sim, bons modos, a necessidade de corrigir imperfeições; e fingiremos gozar da juventude até o último fio de cabelo; e assim por diante). Derrotadas, nos convencemos a tomar medidas que podem ser nossas mordaças pessoais, mentindo para nós mesmas que são escolhas que bancamos. Mordaças invasivas como uma droga que você compra num buraco na cidade e te demanda uma vida de manutenção, que seria a proposta do A substância.
Assisti metade do filme de olhos fechados, meio fechados ou encarando um outro ponto na parede. Sangue, agulhas, facas, transfusões de fluidos, socos, socos, socos, chutes, bastante sangue, mesmo. Tenho horror a Tarantino e embalagens de histórias que dessensibilizam nossas reações. Entorpecem o horror, o nojo, o absurdo. É o que acontece quando um gênero cinematográfico vive disso: pega o excesso e não teria como a ser diferente, imagino (comentei no texto anterior sobre a dificuldade de processar esses exageros, como mensurar a fortuna de um bilionário).
Mas vejo o filme como um zoom na subjetividade de uma mulher na história de sua busca por uma mentira. O desespero para comprar uma mentira, na verdade, e a crise quando a ficção e a realidade entram em colapso. Primeiro, acreditando que é possível ser, mente e corpo, coisas separadas, e estar em um corpo inadequado, querendo resgatar uma realidade compatível com sua mente, sua alma, seu desejo; e segundo, ocultando essa distinção, jogando o corpo em desuso num quartinho isolado, longe das vistas.
As duas personalidades compartilham de uma consciência e são a mesma pessoa, mas não acessam a mente uma da outra; apenas os efeitos das suas escolhas. Apesar de não considerar um filme imperdível, vejo como algo diferente, o enredo oferecendo coisas a se pensar em uma roupagem controversa (violência e nudez vende). Não diria que gostei, que veria novamente ou que preferiria que não existisse (é o caso de Pobres Criaturas: não gostei, não veria de novo e desejaria que ele nem existisse pela apologia a pedofilia e por amenizar a prostituição). Preferiria, sim, uma versão menos violenta, com menos (nenhum) deleite masculino, Mas fala, de qualquer forma, sobre essas mentiras, sobre fugir da realidade com o pretexto de sobreviver e sobre essa fragmentação que “a cultura” causa em nós — e se manifesta com mais clareza no nível estético, visual. Você pode até tentar se enganar, mas a realidade insiste, e pode te atingir feito uma bomba.
Quero aproveitar e trazer um parênteses.
"Qual é a necessidade?” é uma pergunta bem recorrente que vejo expressar um sentimento de muita frustração e revolta, mas que não consegue se ancorar em palavras melhores. Parece ser uma pergunta que pede uma resposta além de fiz assim porque quis. Isso cabe pra um sem-número de situações, mas pensei muito sobre isso depois de assistir A substância. Por mais tentador que seja concordar automaticamente com as análises de pessoas próximas ou que admiro, prefiro observar de longe até o ponto de ver meus incômodos serem explicitados. No entanto, vi as discussões (vivas, de redes sociais, e não aquelas de matérias estáticas) cairem nessa pergunta. Qual a necessidade de mostrar tanta violência contra uma idosa, qual a necessidade de tanto sangue.
Primeiro, parece que temos um impasse: as coisas “têm o direito” de existir, mesmo que você não goste. Ao mesmo tempo, temos o direito de criticar as coisas sem necessariamente querer impedir que elas existam. Um terceiro lado é que algumas coisas não deveriam existir, mesmo, por serem nocivas; compactuarem, trazerem o sadismo, e não a crítica. Arte não é casa da mãe Joana onde vale tudo.
“Não ver necessidade” funciona para o primeiro contraponto, mas não é uma resposta boa o suficiente para o segundo, porque é só a sua lente de necessidade. Pra sustentar um nível além de desprezo particular, precisamos de mais.
Um exercício tentador para avaliar a misoginia é substituir o alvo dessa agressão, e imaginar como seria a nossa reação (desconforto, aversão) ao enquadrar um cara-gay-e/ou-negro, por exemplo, ali. Quantas são as histórias que escolhemos contar com extrema violência homofóbica/racista direcionada a esses homens, com o pretexto de denúncia? Não sei se esse é o melhor exercício, mas é o que consigo imaginar.
Um beijo,