De alguma forma, anoiteceu nesse espaço de tempo em que fechei os olhos, espalhada pelo chão. O sentimento estava dividido entre um certo grau de serenidade, descansada no meio das plantas fora de seus vasos, mas também com uma pressão no peito, percebendo a segunda-feira correndo em minha direção, se aproximando mais a cada segundo. O estômago manifestou o estranhamento com esse jejum diurno. Me levantei, me limpei, reposicionei as plantas em seus pontos de sol ideal e revirei a geladeira, procurando por sobras da semana. Com mais consciência, desperta, percebi a infelicidade tomar conta do restante da mente, ruminando insatisfações em segundo plano enquanto esquentava alguma comida.
Era estranho, perceber que uma espécie de bloqueio sempre se erguia quando me propunha a fazer algo. Senti que me desviava do meu propósito inicial o tempo inteiro, e só de pensar na palavra “propósito” já tinha náuseas. Eu só funcionava em ondas e, se não me erguesse quando viessem, as perdia. Seguiria imóvel, chacoalhando as pernas pensando que isso me manteria na superfície (mas me puxava mais para baixo quase sempre. Uma coisa a se aprender com a densidade dos ossos e seus mistérios).
A caneca remendada retinha algumas gotas de suco e se tornou um centro de encontro para um fio de formigas. Senti raiva, raiva de mim mesma, raiva daquele silicone, um remendo improvisado, pouco poético, a antítese do kintsugi. Via meus próprios remendos assim, desleixados. Já me disseram que a vida era uma sequência de improvisos, onde só podemos seguir à base de gambiarras. Uma verdade, sim, mas não aplacava tanto a dor das rachaduras grosseiras. O que seria o pó de ouro para essas feridas? Transformar tudo em arte? Revirei os olhos, o estômago revirou junto.
O ceticismo era um abraço, me lembrei, aquele tom de voz sarcástico que me foi muleta tantas vezes ao dizer das minhas inseguranças sem querer tê-las berrando para o mundo e atraindo olhares confusos para mim. Era o abraço apertado, mas com um aperto que machucava, gerava aquela dor que insistia em dizer: era a dor boa, a dor do alívio. Não era, no caso. Suspirei. O oposto de revirar os olhos nesse eixo de sentimentos, liberar ar e ruído.
Eu queria, sim, escrever logo aquela música. Compor para tocar no meu baixo fazendo caras expressivas demais, curativas apenas por demonstrar, em som e rosto, o que não vinha fácil em palavras. Querer, no entanto, era difícil demais. Porque de tanto querer, não bastava conter a vontade ali, naquele caderno, naquele instrumento. Não, o desejo é ambicioso, quer logo criar um sentido conectando mais umas quatro músicas, lançar como EP independente, elaborar uma divulgação à altura, investir uma penca de dinheiro. E desanima, apavora, excita, o querer.
Esse querer não é calouro nessas terras: me atravessou tantas vezes que nem me importo mais em contar. Suas passagens ficam marcadas pelo definhar do corpo, da mente, a secura de quem não persegue, e não persegue porque acessar o desejo, de novo e de novo, torna-se exaustivo, tendo os olhos por todo esse processo que talvez, só talvez, gere uma satisfação se concluído com maestria.
E, para fazer, precisaria engrenar, pegar a onda quando vem.
Comi devagar. Poderiam ter se passado horas, na verdade, a falta de apetite pelos pensamentos, pela segunda-feira. Normalmente os ânimos que levantam o corpo aparecem quando esbarro em uma pista do desejo, rastro gerador de expectativa. É bom, ter expectativa, imaginei, significa que estou viva. O corpo responde a isso, cintila, farfalha, reage de um jeito que assusta, até, como o choque e o embalo ao se jogar no céu presa a uma tirolesa. Adrenalina, mas não somente, ou não exatamente.
Ondas de frio na barriga, ondas de dor recuperando a mágoa de um relacionamento, ondas que existem sem propósito, sem esperar pelos banhistas ou surfistas.
E me dei conta. Não de um jeito bonito, feito um insight genial, talvez sequer uma catarse, mas uma pontada no estômago que me comunicou na velocidade de um pensamento o que insinuava estratégias.
Tudo dói do mesmo jeito; a dor de não realização, de não perseguir, de pegar apenas as ondas pequenas, aquelas que não me levariam tão longe. Já estava preso em minha personagem, por assim dizer, sentir assim, processar assado. E se mudar uma peça cria um novo cenário, posso começar mudando de cenário para experimentar as peças que tenho em mãos de outra forma. E conseguir olhar para os desejos sem desviar o rosto, sem ser acometida pelos caminhos trágicos.
Me veio em uma onda, e resolvi que já era hora de procurar uma praia, fazer dela o meu cenário. Lavei a xícara adocicada e a deixei fora do armário, na linha dos meus olhos para não me deixar esquecer.
(Esqueceria, provavelmente. Os olhos se acostumam.)
***
Para mim, ainda é um mistério, como a mente lida com o desejo e o transforma em sofrimento, de alguma maneira. A dor, a inveja, o desprezo, todos eles apontam um pouco para o que é importante. Mostram o que você queria ter para si, o que teme perder, como é insuportável pensar em nunca conquistar aquilo. Também se enxergar nos contrastes, ver o que é importante a partir do que incomoda, “quem nunca viu a tristeza, nunca reconhecerá a alegria”, e tantos outros desdobramentos dessas (supostas?) dualidades. Pode ser a pontinha de um caminho, a sombra de uma bússola que pode ensaiar uma orientação, mas ainda tem todo um território extenso a se considerar em cima daquilo.
Recuperei um vídeo com a Maria Homem onde a proposta é falar sobre relacionamentos românticos, principalmente, mas que rende um pensamento espiralado sobre compulsão à repetição e "por que a gente sempre volta pro lugar que dói?".
Pois, de novo, “sofrimento é uma bandeirinha de como a gente goza”.
Desejar implica num teco de sofrimento, mas não entrar em contato com o desejo, “com a nossa poesia, com a nossa conexão”, nos faz adoecer. Taís Bravo escreveu, bonitamente, em sua última newsletter. Assuntos inesgotáveis.
Essa newsletter faz parte de uma série de três que costurei para o curso de técnicas criativas para transformar ideias em texto, da Aline Valek. Começamos com o tema do fluir, o flow, com as mãos, e elas guiaram para fora a dor na parte 2. Aqui, a dor se manifestou de outra forma para apontar o mesmo desejo que alimenta o fluir. Essa “série” foi uma experimentação para conectar entendimentos que, frequentemente, são lidos como avulsos ou antagônicos. Espero que tenha se entretido e/ou alimentado algumas minhocas na cabeça e, claro, te convido a compartilhar comigo qualquer pensamento que tenha vindo desses textos.
Um beijo,